Padre Júlio Lancellotti: “Existir no Brasil já é uma rebeldia”

Conhecido como rebelde, o Padre Júlio Lancellotti tem usado as redes sociais para lutar contra o fascismo e pedir solidariedade endêmica em tempos de coronavírus.

Sem medo de censura, o Padre Júlio Lancellotti, da arquidiocese de São Paulo, usa as redes sociais para combater o avanço do fascismo no Brasil. Em seu canal no Youtube todos os domingos, durante a homilia, ele fala das desigualdades sociais e da importância da empatia para atravessarmos esse momento difícil da pandemia da COVID-19. Com 35 anos de ordenação, antifascismo para ele é mais que um rótulo, é uma prática cotidiana e necessária. “Em um País que está vivendo o neofascismo que estamos vivendo todo tipo de resistência, rebeldia, desobediência é um sinal de sanidade mental”, avalia.

Nascido em 1948 na cidade de São Paulo, Padre Júlio Lancellotti dedicou sua vida na Igreja Católica a trabalhar com jovens encarcerados, portadores de HIV, população LGBTQIA+, sem teto e diversos outros segmentos de pessoas em situação de risco social e econômico. Durante a pandemia do novo coronavírus seu trabalho junto à população de rua não cessou. Ele acorda todos os dias e recebe pessoas que precisam de alimentos, máscaras e diversos outros tipos de ajuda. As doações também aumentaram e ele lembra que não basta ser solidário agora diante da pandemia. “É um momento de percebermos que essa onda de solidariedade não deve ser uma onda, ela tem que ser permanente. Precisamos de uma solidariedade endêmica e não pandêmica”.

A entrevista é de Lillian Bento, publicada por Pressenza, 13-07-2020.

Eis a entrevista.

O Brasil vive um momento de forte avanço do racismo e do fascismo. Diante disso como a Igreja tem se posicionado? Não há silêncio muito grande por parte da Igreja Católica?

Várias vozes da Igreja tem se levantado contra o racismo, contra o genocídio da juventude negra. Isso é uma constante e em todos os espaços possíveis temos nos pronunciado contra o genocídio da juventude negra, contra todo tipo de discriminação e preconceito, contra a homofobia, LGBTfobia, contra o extermínio dos povos indígenas. O CIMI fez algumas notas sobre o assunto, sobre os povos indígenas e sobre os impactos da pandemia do coronavírus nas aldeias.

Agora a Igreja Católica, assim como outras instituições, é muito plural. Institucionalmente a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) tem se manifestado contrária a todas essas formas de autoritarismo, de fascismo, a toda forma de extermínio, a toda forma de atuação que seja contra os movimentos populares, os grupos indígenas. As pastorais afro tem se manifestado também. Mas a Igreja, como toda instituição, é multiclassista, então há vozes discordantes e há também aqueles que não se manifestam, mas a classe popular da Igreja Católica, todos os que são envolvidos nas pastorais sociais são unânimes em condenar toda forma de preconceito, discriminação, extermínio, violência, fascismo, autoritarismo e ditadura.

A história da igreja católica no Brasil conta com nomes de luta como Dom José Maria Pires, Dom Helder Câmara, Dom Luciano Mendes de Almeida, Dom Paulo Evaristo Arns, tem o Santo Dias da Silva que foi assassinado pela Polícia Militar, como tem a Margarida Alves, como tem a Irmã Dorothy Stang, que foi assassinada. São muitos os que lutaram e lutam contra tudo isso.

Tem sido relevante a atuação desses chamados grupos sociais da Igreja Católica diante da crise política atual?

Olha, a Igreja Católica sozinha não vai fazer a mudança, mas tem que estar alinhada com os outros grupos. Você veja, quais são as vozes que hoje se levantam contra todo esse fascismo? Nossa sociedade é muito pluralista, muito complexa, então há movimentos em diferentes lugares e há silêncio também em diversos lugares. Se eu ficar preocupado com quem tá em silêncio não faço nada. Acho que a gente tem que se manter firme na luta, na perseverança, na persistência para podermos ir em frente. Se a gente for procurar apenas pelo silêncio há em toda parte. E o silêncio do Judiciário? E o silêncio do Ministério Público? E o silêncio de tantos deputados? Dos empresários, dos banqueiros? Quem está ganhando com o fascismo está calado.

Por diversas vezes o senhor foi apontado como um padre rebelde. Qual a sua opinião sobre esse adjetivo que lhe foi atribuído?

Existir no Brasil já é uma rebeldia. Em um país que está vivendo o neofascismo que estamos vivendo todo tipo de resistência, rebeldia, desobediência é um sinal de sanidade mental.

Há muitos religiosos falando que a pandemia é uma oportunidade para que haja uma melhoria nas pessoas?

A desigualdade ficou muito clara com a pandemia e nesse sentido há uma insatisfação muito grande porque estão todos vendo que a miséria cresce e que esse estado de calamidade em que a gente vive atinge as pessoas de diversas maneiras. Então, são muitas as formas de que todos acabam sendo atingidos de alguma forma, então é importante que nesse momento isso se canalize para realizar essa ação conjunta, que as pessoas percebam isso para se movimentarem também, pra lutarem por uma transformação.

O senhor acha que essa mudança está acontecendo? As pessoas tem procurado ajudar?

Assim como chegam muitos para ajudar, que desejam a mudança e se sensibilizam, chegam também os que xingam, que ofendem. As máquinas do gabinete do ódio funcionam para atingir nossas ações. São as duas vias, mas há neste momento uma força de solidariedade e transformação. Não dá para saber agora se haverá mesmo uma transformação. Essa mudança a gente vai verificar na história porque assim como há gente solidária, há gente que está superfaturando ou sendo corruptas, por exemplo, na compra de respiradores.

O senhor tem recebido muitas ofensas na internet em 2020?

Não tantas como o apoio. O apoio é maior.

Como tem sido a rotina da paróquia agora neste período de isolamento social?

É um tempo diferente, que exige mais cuidado. Nós continuamos convivendo com o povo mais pobre, com as pessoas que estão em maior sofrimento e dificuldade. É um momento de perceber que essa onda de solidariedade não deve ser uma onda, ela tem que ser permanente. Precisamos de uma solidariedade endêmica e não pandêmica. Tem que continuar firme mesmo depois da pandemia e entrar nas estruturas política, econômica, nas estruturas que mantém o Estado que nós vivemos. Mas é preciso que haja uma transformação e que a solidariedade não seja um gesto individual, mas um gesto político. A desigualdade não mudou. Continua presente e está mais visível.

Qual a influência da história da Igreja Católica no Brasil nesta ala da instituição que permanece calada diante do avanço do fascismo?

No tempo da ditadura qual foi a voz que se ouviu no Brasil? Quem defendeu os presos políticos? Quem que se manifestou contra a tortura? Foi a Igreja. Acho que dizer que esse silêncio é histórico não é verdadeiro. E a voz de Dom Paulo Evaristo Arns? E a voz de Dom Helder Câmara? Isso para pegar dois exemplos. Acho que dizer que há um silêncio histórico é desprezar essas vozes e é uma análise caolha. Há vozes de luta desde o início, como o Padre Antônio Vieira contra a escravidão dos indígenas, todos que lutaram contra a escravidão do povo negro, então não dá para dizer que esse silêncio é hegemônico. Acho que dentro da Igreja há o mesmo conflito que há na sociedade toda. Há os que gritam e há os que calam. Não dá para dizer que é uma coisa só. Agora esses grupos da igreja católica que tem atuado nas pautas sociais não tem espaço na mídia, por exemplo, para falar. Por isso parece maior esse silêncio. São invisibilizados.

E quanto à presença da comunidade LGBTQIA+ na Igreja?

Acho que essa é uma questão que sempre vai haver uma tensão dentro da Igreja, como em diferentes outros setores da sociedade. Há os que aceitam e há os que não. Acho que a gente tem que ter claro que há um conflito e não tem uma posição hegemônica. Dizer que todos são contrários não é verdade. Como o racismo, que é uma pauta com maior força dentro da Igreja, mas há os que se calam por razões históricas e há os que gritam e se envolvem na luta contra o racismo. Não há um silêncio em relação a isso, há tensões, conflitos. Por exemplo, ainda são poucos padres negros, mas assim como há um grupo pequeno de padres, há um grupo pequeno de jornalistas negros, de juízes. Quantos negros são deputados? Essa é uma questão histórica. A questão da escravidão e a segregação ocasionada pelo racismo está presente na sociedade como um todo.

A Teologia da Libertação traz como condição sine qua non para viver o Evangelho de Cristo a opção preferencial pelos pobres e a defesa dos direitos humanos. O senhor acredita que ainda tudo isso caiu no esquecimento?

A teologia da libertação não morreu, ela continua presente na tensão do caminho. Isso é uma coisa histórica e sempre vai acontecer assim. Vai sempre ter aqueles que estão aliados ao poder e aqueles que estão aliados aos pobres, aos que sofrem. A Teologia da Libertação por si só ela nunca será hegemônica. Ela sempre vai estar ao lado dos que sofrem privações. Tem novos estudos, novos teóricos, reflexão teológica constante e permanente. Não há libertação sem conflito. Ninguém consegue tirar as correntes com o auxílio dos que acorrentam. A luta contra a escravidão vai estar sempre presente.

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