O contexto imposto pela pandemia de covid-19 me faz questionar, como mãe e professora, os itinerários da educação na contemporaneidade, especialmente, quanto ao distanciamento da escolarização com tempo presente e com a vida: Quando a vida está coletivamente em risco, o que cabe à educação? Por que mantemos padrões pedagógicos hegemônicos em uma situação tão distinta? Nos parece aceitável que a educação seja pensada para o futuro? Como relacionamos a atividade educativa à vida?
Frente à calamidade da pandemia, a educação, que deveria atuar na criação e difusão de éticas em prol da vida, tem contribuído no alargamento do fosso de nossas relações com o mundo, inclusive com as desigualdades sociais. Há um apelo para que mantenhamos o ritmo de produção que nos subjetiva como o homo faber arendtiano e, em relação à atividade educativa, isso significa a ininterrupção do conteudismo no ensino e na aprendizagem. Assim, diversas instituições educacionais buscaram migrar freneticamente suas ações presenciais para atividades à distância, o que gerou vários impasses.
Como parte considerável dos alunos da escola pública não possui condições materiais de acompanhamento de aulas on-line, inúmeras redes educacionais públicas não se dedicaram a pensar em estratégias outras de formação, e muitos estudantes foram colocados à margem de proposições pedagógicas. Este modelo excludente contribui para que sofram diversos tipos de violência, como exemplo, a manutenção do calendário do ENEM, acompanhado do convite para que se reinventem; afinal, como apregoa o slogan do MEC, “a vida não pode parar”. E não pode mesmo, mas retomarei isso logo mais.
Quanto às redes privadas, um grande número de escolas tem cambaleado, diante das adaptações aligeiradas do ensino presencial para atividades remotas, violentando, também, alunos, suas famílias e professores. O que vemos são aulas realizadas por video-conferência ou gravadas, envio de tarefas do material didático e de atividades seguindo os mesmos moldes, apesar de estarem dispostas em plataformas digitais, além de fóruns para dúvidas. Algumas escolas ainda apelam para a ideia de autonomia e protagonismo do estudante, todavia, parecem não questionar o que propõem, já que o aparato tecnológico é utilizado mantendo o padrão hegemônico de educação transmissor de conteúdos, com proposições unilaterais, que tende a homogeneizar a aprendizagem e suprimir questões psicoemocionais.
Há um acordo tácito que contraria Edgar Morin em “A cabeça bem-feita”, quando afirma que mais vale uma cabeça bem-feita do que uma cabeça bem cheia. Assim, mesmo com a vida ameaçada, o conteudismo indica que não há pudores na crença de que vale mais uma cabeça bem cheia, ainda que sem garantias de que as atividades remotas, da forma como estão sendo propostas, estarão enchendo as cabeças. Enquanto sociedade, nos perguntamos que aprendizagens subjetivas os estudantes, de escolas públicas e privadas, estão fazendo diante desse contexto? Interessa saber como estão se sentindo? A que a escola está servindo? Por que pausar a produtividade impactaria negativamente no futuro? Quando é o futuro? É agora? E agora? Agora já é o futuro? Em outras palavras, que recados estamos dando como humanidade?
A lastimável situação que a espécie humana está submetida diante de um vírus deveria nos servir para viradas paradigmáticas e rupturas com modelos de educação enrijecidos, homogeneizantes, monocromáticos e monológicos, além de servir à precipitações educativas maleáveis, que contemplem a heterogeneidade, a dialogicidade, a policromia e a polilogia de processos formativos humanos. Os questionamentos que fiz (e outros que podem ser feitos) são necessários para vincularmos a escolarização à vida, mas não uma vida na qual nos aproximamos pelo que produzimos e, sim, uma vida que nos torne mais próximos pelo que significamos no coletivo, uns com os outros, no mundo; afinal, a vida, em seu sentido radical, não pode parar. Sigo na direção contrária da atividade educativa vinculada à produção, em seu sentido fabril. Penso em uma educação no presente e para o presente e no processo de escolarização como formação humana, não para uma vida futura, mas como vida-vivente.
E por isso reivindico pausas. Pausas para questionarmos os percursos que a educação está trilhando. Pausas para que as instituições educacionais se revisitem e busquem nas fissuras da convivência em isolamento e nas micro-ousadias da invenção, meios de extinguir a negação e a exclusão, representadas pelo fetiche da produtividade. Pausas para vermos as cores vivas de ideias que o famigerado conteudismo faz esmaecer. Pausas para darmos evidência às relações com o conhecimento, com o mundo, com o outro e conosco mesmos. Para provocarmos problematizações, dúvidas e desejos. Para criarmos e apreciarmos arte. Para filosofarmos. Sugerirmos novas geografias de pesquisa. Sentirmos o prazer da literatura e dos poemas e construirmos portfólios solidários como testemunhos das viradas dessa passagem. Enfim, pausas para que nossa formação humana tenha uma ética amorosa com o mundo.
Quem sabe, na rebeldia de novos percursos, após a pandemia, teremos menos slogans “a vida não pode parar” e mais pedagogias da vida, que não pode parar.
*Professora, FACED-UFBA [email protected]