Após um ano em que as relações raciais nos Estados Unidos estiveram constantemente sob os holofotes, o estado da Geórgia elegeu seu primeiro senador negro.
Com 98% dos votos apurados até a manhã desta quarta-feira (6), Raphael Warnock derrotou a republicana Kelly Loeffler e tornou-se também o primeiro senador democrata negro a ser eleito por um estado do Sul americano, região em que as políticas segregacionistas foram historicamente mais duras.
Desde 2005, o reverendo Warnock, 51, como também é conhecido o agora congressista eleito, é pastor da Igreja Batista Ebenézer, em Atlanta, mesma congregação onde pregava, no passado, Martin Luther King Jr. (1929-1968), um dos principais líderes da luta histórica dos negros americanos por direitos civis.
A vitória na Geórgia tem ainda o peso simbólico de o estado ter sido não apenas o lar de Luther King mas também o de outro ativista símbolo da busca por equidade racial, o deputado democrata John Lewis (1940-2020), que morreu em julho, aos 80 anos, em decorrência de um câncer no pâncreas.
Filho de um veterano da Segunda Guerra Mundial e de uma trabalhadora das colheitas de algodão e tabaco nos campos da Geórgia, Warnock cresceu com outros 11 irmãos em Savannah, cidade próxima da divisa do estado com a Carolina do Sul.
Durante a campanha, ele falou em diversas ocasiões sobre suas experiências de vida como um homem negro nascido e criado no Sul dos EUA.
Ao lado da vice-presidente eleita, Kamala Harris —também ela uma pioneira ao ser a primeira mulher e a primeira pessoa negra a ocupar o cargo na Casa Branca— o reverendo falou sobre as vezes em que foi detido por policiais no Capitólio, sede do Legislativo americano, durante protestos e ações políticas.
“Eu não fiquei bravo com eles. Eles estavam fazendo o trabalho deles e eu estava fazendo o meu”, disse Warnock. “Mas, em alguns dias, vou encontrar aqueles policiais do Capitólio novamente e, desta vez, eles não vão me levar para ser fichado. Eles poderão me ajudar a encontrar meu novo gabinete.”
Ecoando o discurso do presidente eleito, Joe Biden, o qual fez promessas de um governo unificador e para todos, Warnock disse o mesmo ao ser projetado pela imprensa americana como o vencedor de uma das vagas no Senado.
“Eu irei para o Senado para trabalhar pela Geórgia inteira, não importa em quem você votou nesta eleição”, disse ele em uma transmissão ao vivo nas redes sociais. “Hoje nós provamos que, com esperança, com trabalho e com o povo ao nosso lado, tudo é possível”.
O discurso seguiu o mesmo tom do apresentado durante a campanha que, por sua vez, não impediu Warnock de ser alvo de uma série de ataques dos republicanos, incluindo o próprio presidente dos EUA.
“Warnock é o candidato de esquerda mais radical e perigoso a buscar esse cargo, e certamente não tem os valores da Geórgia”, disse Donald Trump durante um comício em Dalton na última segunda-feira (4), sem especificar a qual valores se referia.
Loeffler, adversária de Warnock e candidata à reeleição no estado, usou trechos de sermões do reverendo na Igreja Batista Ebenézer para apresentar declarações fora de contexto que poderiam prejudicar a visão dos eleitores sobre ele em temas como o papel dos militares e a relação dos EUA com Israel.
A vitória do pastor negro deixa o Partido Democrata mais próximo de conquistar a maioria no Senado americano. Ainda há outra vaga em disputa, mas o o democrata Jon Ossoff aparece com 50,19%, pouco à frente do republicano David Perdue, com 49,81%.
A maioria dos votos que ainda falta ser contada vem de regiões democratas do estado, de modo que se espera que as vantagens de Warnock e Ossoff cresçam na reta final da apuração.
Caso as vitórias dos dois democratas na Geórgia se confirmem, Biden terá maioria nas duas Casas do Legislativo, o que facilitará a vida do novo governo nos dois primeiros anos da gestão.
Os democratas mantiveram o controle da Câmara nas eleições de novembro e contam com a vitória dupla no estado para tomar o controle do Senado. Se Perdue superar Ossof, porém, a sigla vai controlar a Casa —o que significa que Biden será obrigado a negociar com a oposição para aprovar seus projetos.
A Casa tem 100 senadores (dois por estado), sendo que atualmente 50 são republicanos e, 48, democratas (incluindo dois independentes que votam com o partido). Em caso de empate, quem tem o voto de minerva é o vice-presidente do país (que também é o presidente do Senado) —ou seja, a partir de 20 de janeiro, a democrata Kamala Harris.
Biden foi o primeiro candidato democrata a vencer na Geórgia desde 1992. Ele derrotou Trump ao receber 2.473.633 votos, equivalentes a 49,5% do total. O republicano ficou com 2.461.854 (49,3%), marcando uma diferença de exatos 11.779 votos.
Uma das principais razões para a virada democrata no Estado foi o trabalho pra estimular eleitores a votar, coordenado por lideranças como Stacey Abrams, que foi representante estadual (equivalente ao deputado estadual no Brasil) por dez anos e candidata derrotada ao governo da Geórgia, em 2018.
Abrams tomou como prioridade em sua carreira a militância contra a supressão de voto no estado —as formas variadas pelas quais o próprio sistema eleitoral impede as pessoas de votar, desde a dificuldade de acesso às urnas até eventuais irregularidades no sistema de contagem, e que afetam predominantemente as populações não brancas e pobres.
Abrams fundou, após sua derrota eleitoral, uma organização voltada a essa causa, a Fair Fight Action (ação pela luta justa), que também estimula a participação política das comunidades negras no estado.
Nas últimas semanas, Trump fez publicações sobre o pleito na Geórgia para denunciar supostas fraudes em massa que, segundo ele, roubaram sua vitória neste estado tradicionalmente republicano —ele não apresentou provas que sustentassem as acusações.