Na última quinta-feira, 10 de março, durante a primeira edição do Noites de Parangolé de 2016, em show circense realizado pela companhia Teatro de Anônimo na Fundição Progresso, a atriz branca Paula Preiss, da companhia Circo da Silva, realizou uma performance utilizando Black Face (http://bit.ly/1YEuHrq) – técnica teatral racista onde o ator ou atriz pinta a cara com tinta preta e utiliza estereótipos negativos associados a população negra com a intenção de “entreter” seu público.
Por Bruno F. Duarte Enviado para o Portal Geledés
Poderia parar aí e exigir uma mínima reflexão da artista e da produção do evento para que uma técnica tão rasa e discriminatória seja utilizada ainda hoje, na cidade do Rio de Janeiro, ou em qualquer lugar do Brasil – país que tem mais da metade de sua população autodeclarada negra. Mas é importante falar sobre isso.
Nos últimos meses, o black face foi criticado várias vezes nas redes sociais ou na imprensa, inclusive quando a ação é realizada por negros com pele menos pigmentada – como no caso da atriz Zoe Saldana interpretando a cantora Nina Simone em sua mais recente biografia audiovisual (links abaixo), não é possível que artistas minimamente comprometidos com seu trabalho – em qualquer linguagem – não tenham se confrontado com essa questão ainda hoje no país. Se isso não aconteceu ainda, creio que existem pelo menos três questões: (1) As escolas de formação artística não abordam a diversidade da cultura e da sociedade brasileiras em seus currículos ou o fazem reproduzindo opressões; (2) profissionais estão apresentando seus trabalhos fora dos espaços culturais frequentados por aqueles que compõe a maioria da população; ou (3) artistas escolhem conscientemente estar fora dessa discussão e consequentemente a continuar reproduzindo narrativas opressoras.
Procurei João Carlos Artigos, artista circense e um dos fundadores do Teatro de Anônimo, o único negro a se apresentar nesta noite, logo após o número. Falei sobre o constrangimento e pontuei o mote racista daquela apresentação. Não deu tempo de exigir que houvesse uma retratação antes do fim do espetáculo, Artigos logo se dirigiu ao camarim para continuar sua apresentação, mas afirmou conhecer a técnica do black face, e partiu ao me informar que a artista era de outra companhia – Circo da Silva. Foi a primeira vez que assisti ao Noites de Parangolé (http://bit.ly/1TQR3at
). Não posso opinar sobre o histórico das apresentações, que acontecem desde 2008, mas considero lamentável a apresentação de um número como esse num espaço de pesquisa, formação e qualificação de profissionais das artes cênicas, como o projeto se apresenta.
Paula ainda retornou duas vezes ao palco junto com outros artistas que se apresentaram na noite para – pasmem – passar o chapéu. Utilizar-se da imagem que serve para discriminar toda uma população com índices de vulnerabilidade dos mais altos no país para fazer sua arte e tentar ganhar algum dinheiro com isso é, no mínimo, vergonhoso. Via-se que ela – ainda nos trajes do personagem, com a mesma cara preta – insinuava roubar bolsas do público, além de distribuir camisinhas logo após acariciá-las sobre um volume em sua calça, que representava, óbvio, um pênis de tamanho descomunal. Seus dentes também estavam pintados de preto – sugerindo cáries ou a falta dos dentes.
Para aqueles que numa primeira leitura minimizam a situação, explico. São justamente os estereótipos associados à população negra – como os reproduzidos pela atriz para uma plateia de mais de 300 pessoas– que lançam as bases para o senso comum acreditar que nós negros e negras somos naturalmente destinados à vadiagem e ao crime, são essas narrativas que hipersexualizam nossos corpos, são esses microdiscursos que transformam a exclusão de um grupo social do acesso pleno ao sistema de saúde em falta de cuidado pessoal e riso alheio.
São essas narrativas que constroem diariamente a ideia de que pessoas negras têm menos valor. De que a vida de negros e negras valem menos. E numa cidade como o Rio de Janeiro, num país como o Brasil – onde 77% dos jovens assassinados são negros – esse é o discurso hegemônico de origem escravocrata. Esse é o discurso e o imaginário de uma população que assiste indiferente ao extermínio de um grupo social. Quando você ri de um ator ou atriz que faz black face, você ri de tudo isso. Quando um ator ou atriz faz black face, ele ou ela se posiciona ao lado do problema e não da solução.
Como acreditava e vivenciava Nina Simone, “é o dever de um artista refletir o seu tempo”.
[LINKS para artistas melhorarem]
Artistas repudiam “black face” em peça (Djamila Riberio na Carta Capital)
http://bit.ly/24UdYop
No Brasil o melhor branco só consegue ser um bom sinhozinho (Eliane Brum sobre Black Face na peça “A Mulher do Trem”, da companhia Os Fofos Encenam, no El País.)
http://bit.ly/1cX6qdD
Para homenagear África, Baile da Vogue escolheu o racismo (Stephanie Ribeiro no Huffpost Brasil)
http://bit.ly/1KPVCy2
Black face no Pânico na TV: racismo, intolerância e xenofobia (Walmir Júnior no Jornal do Brasil)
http://bit.ly/1TQRykK
Zoe Saldana é a mulher mais criticada de Hollywood? (El País)
http://bit.ly/1P37bNu
Filha de Nina Simone defende Zoa Saldana, que interpreta a artista em filme (UOL)
http://bit.ly/1LfPuQ7