Pesquisa analisa racismo no Brasil

 

Quanto mais escura a cor da pele, menos renda, menos educação, menos oportunidades. O inverso também é verdadeiro: quanto mais clara a cor da pele, mais renda, mais educação, mais oportunidades. Para além da diferença aguda entre os pontos mais extremos da desigualdade na estratificada sociedade brasileira – na ponta mais alta, homem, branco, urbano e rico; na mais baixa, mulher, preta, rural e pobre -, a pesquisa A Dimensão Social das Desigualdades, do sociólogo Carlos Costa Ribeiro, encontrou uma escala de desigualdades que acompanha de forma contínua o escurecimento da cor da pele.

Os dados mostram como a cada ponto a mais no escurecimento da cor da pele corresponde também um ponto a menos na escala de oportunidades sociais e econômicas (veja gráfico na próxima página). “Com isso, consigo refinar a percepção sobre desigualdade racial”, diz Ribeiro, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). A proposta de trabalhar com um amplo espectro de cores de pele – 14, autodeclaradas pelos seus entrevistados – está ancorada na história da miscigenação racial no país. No Brasil, explica, raça diz mais respeito à aparência física e à cor da pele do que à origem. Tonalidade da pele, tipo de cabelo, formatos de nariz e de boca são traços distintivos de maior ou menor proximidade com o branco, expressão física dessa miscigenação, e melhor representação da realidade social do que a mera divisão entre brancos e não brancos.

Para recuperar os aspectos históricos do racismo brasileiro, Ribeiro voltou a 1890, ano do primeiro censo demográfico no país, quando 56% da população era negra. O fim da escravidão havia sido decretado dois anos antes. Em seguida, uma política de “embranquecimento” estimulou não só a vinda de imigrantes europeus como também os casamentos inter-raciais, início da miscigenação brasileira: “Havia uma ideologia racista que considerava os brancos superiores aos negros, e esses casamentos eram uma forma de projetar o embranquecimento da população”, afirma.

O censo de 1940 já mostrava os primeiros resultados dessa política: 64% dos brasileiros foram identificados como brancos e apenas 36% como negros. São números que se mantiveram mais ou menos estáveis até o fim dos anos 1990, quando 54% da população era autodeclarada branca e havia 46% negros, considerando a soma de pretos e pardos. No censo de 2010, o percentual de brancos caiu para 47% – 91 milhões de brasileiros -, inferior aos 50% que se declararam pretos ou pardos. Do total de 97 milhões de negros, 82 milhões são classificados como pardos.

É nesse ponto que reside o ineditismo da pesquisa, levantamento de dados em uma amostra de oito mil domicílios brasileiros, o equivalente a 3,3% da população. Ao identificar os muitos tons de pele do grande grupo de pardos e, portanto, ao representar melhor as distinções existentes na ampla camada que separa brancos e negros, o estudo mostra que o racismo não está apenas nas pontas extremas entre o branco e o preto, mas se dá em cada um dos degraus de cor que separam, por exemplo, o moreno do moreno claro, o mulato do moreno escuro, o jambo do castanho.

“É uma forma de modelar, de nuançar a desigualdade racial brasileira, em vez de trabalhar apenas com o grande contraste que há entre brancos e negros”, aponta. Ao observar essas nuanças, Ribeiro constata que, no Brasil, uma pessoa de pele branca, mesmo de origem negra, tem mais chances de ser socialmente percebida como branca, independentemente da cor da pele dos pais. No entanto, suas chances de mobilidade social e econômica serão menores, já que a desigualdade de oportunidades está relacionada às origens familiares e as condições socioeconômicas de origem.

Ribeiro observa que sua pesquisa faz sentido no Brasil não apenas porque aqui a divisão entre brancos e não brancos mascara uma realidade social mais complexa, mas sobretudo porque a história do racismo no país passa por uma miscigenação que os Estados Unidos, por exemplo, não experimentaram.

“O enigma da desigualdade racial no Brasil está no fato de que as relações sociais horizontais [entre pessoas da mesma classe social] são relativamente fluidas e flexíveis, mas as relações verticais [entre classes sociais diferentes] são profundamente estratificadas”, diz. Nas relações verticais, pesquisas como essa do Iesp percebem a desigualdade entre renda, educação e ocupação entre brancos e negros, indicadores da extrema rigidez da mobilidade social dos negros. Já nas relações sociais horizontais, os vínculos sociais nas mesmas classes sociais seriam mais flexíveis.

“Comparações entre Brasil e EUA são traiçoeiras, porque os modelos de racismo são diferentes”, argumenta a secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Luiza Bairros. Ela se refere ao fato de que, apesar da miscigenação e da cor da pele, há discriminação mesmo nas situações de sociabilidade horizontal. Ela toma como exemplo uma quadra de escola de samba que, observada por um pesquisador americano, pode dar a impressão de haver maior nível de igualdade entre negros e brancos do que de fato a população negra experimenta no seu cotidiano.

“Em outros espaços que sejam de maioria branca, não há a mesma flexibilidade. Essas relações sociais aparentemente igualitárias só ocorrem em espaços de maioria negra”, diz. Com isso, Luiza ataca também o que considera outro mito do racismo brasileiro: o de que não há segregação espacial. “São sutilezas que precisam ser observadas, sob pena de se considerar que as relações sociais horizontais se dão independentemente da cor da pele.” Assim, o degradê de cores da sociedade pode contribuir para perceber melhor a influência de cada tom da cor da pele na discriminação racial.

A pesquisa chega como parte de uma longa trajetória de trabalhos sobre racismo, que começa com Gilberto Freyre, nos anos 1930, passa pelos estudos do sociólogo Carlos Hasenbalg, autor de “Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil” (1979), e tem seu ponto fundamental de inflexão com o economista Ricardo Henriques nos anos 90. Então pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Henriques já argumentava que o racismo é o núcleo duro da desigualdade brasileira. Afirmação que se deu em um momento político em que o debate sobre cotas, ações afirmativas e políticas públicas criava o que ele e Ribeiro consideram uma falsa disputa: o que é mais importante, a discriminação racial ou a de classe? “Não gosto da ideia de precedência”, afirma Henriques, hoje superintendente do Instituto Unibanco, onde se dedica a projetos de educação para jovens, um dos grandes gargalos da mobilidade social brasileira. “Embora o elemento classe componha a desigualdade, é impossível tirar da história do país a questão racial”, comenta.

Ao mostrarem o degradê da desigualdade racial, Ribeiro diz que seus dados pretendem contribuir para superar essa dicotomia que marca o debate brasileiro sobre desigualdade. “A dicotomia entre classe e raça não faz sentido no Brasil. São as duas coisas, até porque não existe uma fronteira absolutamente clara entre elas”, defende ele. No argumento de que raça é o núcleo duro da desigualdade brasileira, como defendido por Henriques, há um objetivo político determinado: o desenvolvimento de políticas públicas que enfrentem a desigualdade racial sem estabelecer precedência da classe em relação a raça.

“Na cultura das gestões públicas, no desenho das políticas públicas, o racismo entra como uma questão muito remota. Sem o elemento racial, pode-se até fazer uma importante política que enfrente a desigualdade de renda e mesmo assim não terá havido o enfrentamento da diferença”, diz Henriques. A confirmar seus argumentos estão os dados de renda recém-divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicando que, entre 2003 e 2013, a renda da população negra – aí somados pretos e pardos – cresceu 51,4%, enquanto a da branca aumentou apenas 27,8%. Apesar do expressivo crescimento, a renda dos negros corresponde apenas a 57,4% da renda dos brancos.

Em grande medida, o alto percentual de crescimento entre os negros ocorre pelo que as pesquisas de Henriques já haviam detectado no fim dos anos 1990: há uma sobrerrepresentação de negros na população pobre. Em 1999, o pesquisador contabilizou que os negros eram 45% da população, mas eram também 64% dos pobres e 69% dos indigentes. Na medida em que cresce a renda média dos pobres, como ocorreu na última década, cresce necessariamente a renda média dos negros.

“Pretender enfrentar primeiro o problema de classe é acreditar que se pode dar conta da desigualdade em fases e em algum momento chegará aos negros”, diz Henriques. Ao borrar as fronteiras que se pretendiam nítidas no par brancos e não brancos, Ribeiro se alinha à argumentação de Henriques: se a desigualdade social brasileira é pior para aqueles que têm a cor da pele mais escura, políticas que apenas trabalhem com distribuição de renda, sem levar em conta o fator racial, vão alcançar por último o mais preto, que é também o mais pobre e o que tem menos oportunidades.

“No Brasil, como não é possível pensar raça e classe como grupos separados, trabalho com modelo aditivo em que se somam renda, família de origem, raça, gênero, região”, diz Ribeiro. É a partir desse modelo que ele pode encontrar não apenas os extremos – homem branco urbano e rico versus mulher negra rural e pobre – como perceber que em cada ponto da escala de cores há um tipo de discriminação e desigualdade específica.

Com os dados que levantou, a pesquisa caminha na contramão de discursos que apontam para a possibilidade do que alguns estudos sobre desigualdade racial chamam de “embranquecimento por dinheiro”. Como nas estatísticas a cor é autodeclarada, o embranquecimento se daria como parte de processos de ascensão social. Quanto maior a renda, mais aquele que se declarava preto pode passar a se declarar pardo e o pardo pode se declarar branco. No degradê da discriminação percebido por Ribeiro, esse “embranquecimento” tem limites explícitos. “Pode ser uma estratégia para enfrentar a barreira do preconceito”, diz Ribeiro.

“Ainda que as pessoas de pele mais escura possam tentar, é como se a pele negra tivesse um valor em si que não pode ser ultrapassado pela renda”, observa Luiza. “É muito comum no Brasil que as pessoas de pele mais escura que se declaram negras sejam discriminadas em espaços majoritariamente brancos”, observa a secretária, citando como exemplo as dificuldades que os alunos negros cotistas têm enfrentado nas universidades federais. “O que se percebe é que, numa conjuntura de melhoria nas condições de vida nas pessoas negras, as discriminações aumentam, porque cada vez mais negros entram em espaços que eram exclusividade de brancos.”

Um sinal de que o racismo é o núcleo duro da desigualdade brasileira pode ser o fato de que acesso à renda não é suficiente para enfrentar a discriminação. Nesse aspecto, o diretor da Anistia Internacional no Brasil, Atila Roque, afirma que a população negra ainda é a mais discriminada, por exemplo, nas abordagens policiais e na violência de Estado.

“O que se percebe no Brasil é que, apesar das políticas públicas que promoveram melhoria de renda e até de oportunidades e mobilidade social, a população negra ainda é a mais discriminada. Isso se expressa, por exemplo, no chamado racismo institucional, como no acesso das negras a serviços de saúde reprodutiva, nas abordagens policiais e na violência de Estado em geral. Jovens negros também estão entre as principais vítimas de homicídios, tragédia que não tem merecido a devida atenção das políticas públicas. O racismo no Brasil é fator central de uma estrutura social que distribui desigualmente o poder político, a distribuição dos recursos e o acesso aos direitos humanos fundamentais”, afirma.

Por fim, há um fenômeno novo percebido tanto pela secretária Luiza quanto pelo sociólogo Ribeiro: há um processo de escurecimento da população, detectado não apenas nos dados do Censo de 2010, que vem sendo confirmado pela última Pnad. Sobretudo entre a população jovem, há uma tendência ao escurecimento que pode estar relacionada com a possibilidade de obter as recentes vantagens conquistadas pelas políticas de ação afirmativa. “Um dos aspectos importantes da discriminação racial no Brasil é a diferença entre a maneira como cada um se autodeclara e a maneira como é visto pelos outros”, afirma Luiza.

Se houver uma vantagem em se declarar negro, porém, a forma como a raça foi construída no país permite a fluidez na autodeclaração de cor. Até porque, ao enfatizar a cor da pele, e não a ascendência, o racismo brasileiro cria mais uma armadilha. Se os brasileiros fossem discriminados pela origem, e se em 1890 havia 56% de africanos no país, a categoria afrodescendentes se aplicaria hoje a todos os brasileiros. O termo afrodescendente foi criado em 2001 pela ONU para identificar a diáspora africana em vários países. No Brasil, acredita a secretária, acabou sendo usado de forma muito demagógica. “Dizer que somos todos afrodescendentes equivale a dizer que somos todos iguais, o que não é verdade”, diz. O que o trabalho de Ribeiro só reafirma: na sociedade brasileira, alguém está em posições mais ou menos vantajosas não pela origem, mas pelo lugar que ocupa no degradê da cor da pele.

 

 

 

Fonte: Agência Patrícia Galvão

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