Pesquisa mostra que, apesar de homens morrerem mais, as mulheres são mais impactadas no dia a dia da pandemia

Enviado por / FonteEXTRA, por Aline Ramos

Embora os homens morram mais de Covid-19, são as mulheres as mais impactadas pela pandemia no dia a dia. Não se trata só da sobrecarga nas tarefas domésticas, das aulas on-line, do acúmulo de trabalho ou, na outra ponta, do desemprego. Essa é também uma crise da saúde mental, segundo pesquisa da agência humanitária Care International. O coronavírus expôs, como nunca, a falácia da igualdade de gêneros e tem colocado uma geração no limite.

As mulheres, em especial as mães, passaram o último ano se equilibrando entre tarefas. Como o espaço de trabalho invadiu a casa, o tempo gasto com atividades profissionais se misturou à dedicação aos filhos, à organização do lar, à limpeza e aos cuidados com os outros.

Não faltam estatísticas mundiais para tratar da problemática. No Brasil, pesquisa do Gênero e Número e Sempreviva Organização Feminista mostrou a gravidade do tema. Segundo levantamento feito com 2.641 entrevistadas, 50% das mulheres brasileiras passaram a cuidar de alguém na pandemia. Do total, 41% afirmaram trabalhar mais na quarentena. O isolamento social colocou em risco o sustento dos lares de 40% delas. A consultoria McKinsey, a ONU e o IBGE também coletaram dados neste sentido (usados para ilustrar as histórias narradas abaixo).

— A pandemia deixou evidente essa crise do cuidado, algo pouco falado. Historicamente, os cuidados são uma responsabilidade da mulher. É uma complicação que não é discutida nem na esfera pública nem na privada — ressalta Maria Martha Bruno, diretora de conteúdo do Gênero e Número.

Para Joanna Burigo, mestre em gênero, mídia e cultura pela London School of Economics, a chegada dessa crise global humanitária acelerou discrepâncias entre gêneros:

— A pandemia expôs uma problemática que requer medidas urgentes. Acentua diferenças que já existiam na sociedade, mas que estávamos acostumados a naturalizar.

Exaustão e ansiedade

O Brasil vivia o mais perto que chegou de um lockdown quando a funcionária pública Cida Azevedo, de 32 anos, deu à luz uma menina. Dias depois, o marido descobriu que estava com Covid-19. Cida foi para casa da sogra com a pequena Alice, onde também recebeu o diagnóstico.

Além de lidar com todas as inseguranças e demandas inerentes de se tornar mãe, ela se dedicava várias vezes ao dia a medir a temperatura e a frequência respiratória da recém-nascida, com medo de que tivesse contraído o vírus.

Cida trabalha com educação, produzindo material de ensino à distância. O marido é empregado num banco. Dificilmente ela conseguia cumprir as horas contratuais:

— Tive de parar a pós.Eu tenho inveja do meu marido. A minha vida estagnou. Ele foi até promovido antes de a Alice nascer. Será que alguém iria me promover com nove meses de gravidez?

A situação lhe rendeu problemas de ansiedade. Ela começou um tratamento e está agora de licença médica.

Sobrevivendo de doações

Quando a pandemia chegou, Diovanna dos Santos, de 24 anos, fazia bicos de faxineira e o marido trabalhava numa fábrica. O casal morava com o filho de 5 anos, Arthur, numa casinha alugada no Complexo do Alemão com uma varanda que deixou saudades. Com a crise, o marido perdeu o emprego e ela, os bicos. O casal não pôde mais pagar o aluguel:

— Fui para a casa da minha mãe. Como lá não cabia todo mundo, ele foi para a mãe dele. Foi horrível.

Ficaram longe de março a dezembro. Arthur ficou sob os cuidados dela. Por meses, viveram do auxílio do governo. No restante, só sobreviveram com doação de cestas básicas. Como a escola fechou, Diovanna pegava a lição de Arthur pelo WhatsApp enquanto o plano de dados não acabava. Agora, com a conquista de novos empregos, há esperança de melhora.

Trabalho em dobro

Desde que foi orientada a trabalhar de casa, a engenheira Camila Marmo, 38 anos, nunca mais teve sossego. Gerente de marketing de uma multinacional, havia acabado de voltar de licença-maternidade quando o coronavírus chegou ao Brasil. Com uma filha de 6 meses e outra de 3 anos, viu seu planejamento familiar desabar.

Sem escola ou babá, passou a se dividir entre as reuniões virtuais e os cuidados com as filhas. Em busca de espaço, foi da capital paulista para o interior, voltou, alugou uma casa no litoral e, por fim, se mudou para um local mais barato.

— Já pensei em pedir demissão. Mas penso: não, vou resistir — conta: — Algumas coisas, se a gente não faz, os homens não fazem.

O marido já voltou ao escritório, então a maioria das tarefas referentes às filhas fica a cargo dela. Camila começa a trabalhar às 8h30 e permanece até às 18h30 em ligações, uma atrás da outra. Almoça quase sempre em pé.

Só e sem renda

A pescadora Francineide Ferreira dos Santos, de 51 anos, passou o ano isolada em sua casa não só para evitar o contato com o vírus, mas para cuidar do caçula de cinco filhos. Ribeirinha da cidade de Altamira, no Pará, Francineide viu Max John, de 21, definhar na pandemia. Acometido por depressão severa, o jovem de 1,96 metro chegou a 43 quilos.

Em 2019, após dois anos de estudos, Max havia se formado bombeiro civil. Com o desaquecimento da economia, não conseguiu trabalho. Passou a ficar mais calado. Quando ele deixou de comer e dormir, Francineide buscou ajuda psiquiátrica. O jovem, agora um pouco melhor, ainda passa os dias deitado. Com medo de o filho se machucar, Francineide fica em casa.

— Tenho me privado de sair — disse ela, enxugando as lágrimas: — Meu filho se transformou naquela criança pequena. É uma dor irreparável. Nenhuma mulher nesse mundo formou filho pra ficar esticado na cama.

Francineide já cuidava sozinha dos filhos desde 2015, quando o então marido foi embora, depois de tentar assassiná-la com dois tiros. Ela é a responsável pelo sustento da família, mas como está sem pescar, precisa recorrer a doações para sobreviver.

 

+ sobre o tema

Por que a campanha da Always não é tão legal quanto parece

A ONG Safernet, parceira da marca, chegou a publicar...

Médicos Sem Fronteiras reconhecem 24 casos de assédio e abuso sexual em 2017

A organização de ajuda humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF)...

Serviço militar obrigatório e outros argumentos fajutos contra o feminismo

Zézinho adooooora mandar feminista lutar pelo trabalho militar forçado...

para lembrar

A morte da empatia e a vitória da indiferença

O Brasil fracassou no enfrentamento à pandemia da Covid-19....

Pandemia afeta a volta ao trabalho para a mulher negra

Análise do PNAD/IBGE de momentos distintos do cenário nacional...

A vacina deu a medida de Bolsonaro

O início da vacinação no mundo deu ao público...

Um ano depois, a dúvida é sobre nós

Não cabe mais perguntar que governo é este. A...
spot_imgspot_img

Feminicídio: 4 mulheres são mortas por dia no Brasil — por que isso ainda acontece com tanta frequência?

Mariele Bueno Pires, de 20 anos, foi achada morta em casa, em Ponta Grossa, no Paraná, em 23 de agosto. Em seu corpo seminu,...

Filósofa Marcia Tiburi lança livro destinado às mulheres e proibido para ‘homens burros’

“O policial anotou a resposta, deu-lhe os pêsames e não buscou mais detalhes, o que para Chloé fazia parte do pacto de silêncio masculino...

Mulher e negro na política reduzem corrupção e aumentam projetos de inclusão, diz estudo

Lideranças públicas femininas têm até 35% menos chances de se envolver em casos de corrupção do que as masculinas, enquanto líderes negros propõem três vezes mais leis e políticas...
-+=