A pobreza não é boa para a saúde física (hospitais lotados, hábitos alimentares baratos e ruins etc.).
por Contardo Calligaris na Folha
Também a pobreza não é boa para a saúde mental. Há o estresse da luta para colocar comida na mesa. Há a frustração produzida pelo triunfo da necessidade sobre os desejos (“Pense no pão, esqueça-se dos seus sonhos”). E falta dinheiro para terapia e medicação.
Além disso, numa sociedade vaidosa e exibicionista, a falta de meios e perspectivas encoraja “vacilações” morais: tentações e condutas criminosas.
Nessa direção, aliás, é quase sempre proposta uma distinção entre 1) pobreza (que, por si só, não “explica” nada), 2) miséria (extrema necessidade que quase justifica o crime) e 3) exclusão social (em que a lei e os princípios da comunidade não valem para mim porque, se não faço parte da comunidade, não tenho por que obedecer às suas regras).
Agora, se estamos dispostos a considerar que a falta de recursos e de cidadania (num leque que vai desde a pobreza até a exclusão) tem efeitos na saúde mental e no comportamento do cidadão, como não considerar o inverso?
Como recusar a ideia de que o excesso de recursos também transforma nossa maneira de pensar, sentir e julgar? Ou você acha que o fato de dispor sempre do supérfluo não tem consequências? E o poder quase infinito de corromper os outros?
Esta era a visão do Evangelho: “E lhes digo mais: é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos céus” (Mateus, 19:24). Os calvinistas, por exemplo, se esforçaram para mostrar ao mundo que era possível ser rico sem ostentação, desperdiço, soberba etc. Óbvio que é.
De qualquer forma, duvido que, na perspectiva do Evangelho, a riqueza fosse uma culpa em si: os ricos não são sinistros por sua riqueza, mas pela “patologia” mental e moral facilitada ou produzida pela riqueza.
A suspeita que exista uma doença moral e mental dos ricos começou no início dos anos 2000, com a ideia de que o consumismo fosse uma “epidemia” com consequências psíquicas sérias: insatisfação, ansiedade, procura abstrata de “mais algo”, depressão –até obesidade, como consequência. O termo para essa doença dos ricos é “Affluenza”, de “affluent” (rico) e “influenza” (gripe).
O que era, inicialmente, uma crítica moral à sociedade de consumo se transformou numa defesa penal. Em 2013, Ethan Couch, um adolescente do Texas, matou quatro pessoas dirigindo bêbado. A defesa pretendeu que ele sofria de “affluenza”, ou seja, de problemas psicológicos produzidos pela riqueza (substancial) de sua família: incapacidade de entender o valor da lei, certeza de impunidade, desprezo pelos menos favorecidos etc.
Aposto que o advogado de Thor Batista não pensou nessa. Os advogados dos assassinos do índio Galdino não tinham como –era 1997, antes que a “affluenza” fosse “descoberta”.
Engraçado, hein? No tribunal, os pobres poderiam ter desconto por serem pobres; os ricos, por serem ricos.
Não sou muito a favor de descontos para ninguém, mas é verdade que 1) a decadência moral do soldado do tráfico pode ser um efeito colateral da miséria e da exclusão; e 2) ao menos no Brasil, a decadência moral das elites políticas e econômicas é tamanha que é difícil não pensar que se trate de uma espécie de “epidemia”.
No dia 1º de janeiro, Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia, escreveu, no “New York Times”, a coluna “Privilege, Pathology and Power ” (privilégio, patologia e poder). Sugestão: pegue alguém que seja só um idiota ou um mau-caráter e acrescente o tipo de riqueza que lhe permite se circundar só de bajuladores e obter tudo o que ele quer… Você não acha que o cara vai piorar? Não é só que ele será um canalha com mais poder, mas o poder o tornará mais canalha do que ele já era.
Em suma, poderíamos instituir um exame psicotécnico de seleção para ser rico e poderoso. Ok, estou brincando, mas seria bom que a riqueza tivesse limites que ajudassem os ricos a não adoecer de “affluenza”.
É importante cuidar para que a pobreza não se torne miséria e exclusão; mas sem esquecer que a riqueza parece com o anel de “O Senhor dos Anéis”, que acaba com a alma de quem o usa.
Nas palavras de Krugman, nossas “democracias” estão se tornando “narcisocracias”, comandadas por elites doentes: “egomaníacos mimados”, “monstruosamente autocentrados”. E olhe que ele mal deve saber o que é a Lava Jato.