Como jornalista, acompanhei quase todos os atos de 2013, inclusive o fatídico 13 de junho. As primeiras manifestações foram marcadas, assim como as duas primeiras desse ano, pela violência policial, só escancarada pela grande mídia quando seus repórteres passaram a ser alvos da sanha bélica da Polícia Militar. Apesar da ofensiva militarizada do Estado contra manifestantes, nunca senti medo. Ontem, o medo me veio ao peito pela primeira vez em uma manifestação.
Por Igor Carvalho, do Negro Belchior
Cheguei ao ato pela rua da Consolação. Enquanto a subia, em direção à avenida Paulista, notei que a via estava completamente interditada pela PM. Em praticamente todos os acesso havia policiais fortemente armados e que já olhavam para nós, que subíamos para o ato, como inimigos. Enquanto caminhava, refletia sobre o que significam as forças de “””””segurança”””””” do Estado tratarem os que lutam por melhorias sociais e direitos básicos como inimigos. Usando como referência os blindados israelenses da PM paulista, é como se fossemos palestinos caminhando para Gaza – com o pedido de perdão devido ao povo da Palestina pela comparação, que é quem, de fato, é assassinado diariamente.
Quando cheguei na esquina da avenida Paulista com a rua da Consolação, próximo das 18h, não consegui passar o bloqueio policial e acessar a Praça do Ciclista, ponto de concentração. Encontrei alguns amigos da imprensa e dos movimentos sociais, a sensação de todos que olhavam o cerco da PM era a mesma: “eles vão massacras os manifestantes”. Uma amiga querida, repórter, estava indo ao primeiro ato depois de 2013, por conta dos traumas que a violência policial lhe provocaram.
A tentativa de negociação pelo trajeto foi o princípio de todas as afrontas à democracia. Qualquer movimento social, de qualquer linha ideológica, deve ter soberania para decidir qual espaço público quer ocupar para se manifestar. Instantes antes do massacre, algo que a polícia chama de “diálogo”. Me aproximei de Matheus Preis, militante do MPL, para entender a contenda. Um soldado bateu em minha perna com o cassetete. Questionei. “Estamos só começando”, me respondeu. Entendi o recado. Fomos emboscados!
Não houve protesto. No meio da discussão sobre o itinerário, bombas. Muitas. 49 em seis minutos. Quando olhei para a multidão, policiais sacavam seus “sprays” de pimenta e esvaziavam no rosto dos manifestantes. Foi neste momento, que quem estava fora do cerco armado pela PM se tornou alvo. Nos miraram e atiraram. Vi nos olhos deles o prazer de apertar o gatilho sem que isso seja questionado. O braço armado do capital, formado por explorados, ataca os que lutam para melhorar a vida de seus filhos e filhas.
Corri no meio da fumaça. Ao meu lado, três bombas estouraram e uma mulher caiu. A levantei e voltamos a correr. “Nem manifestante sou, só quero ir pra casa”, me disse depois. Quando vencemos a névoa, estávamos na pequena Praça José Molina. A rua tem o formato de uma ferradura, seu início e seu fim são na avenida Paulista. Era uma cilada.
Passei cerca de quinze minutos tentando voltar à Paulista, queria ver se encontrava as pessoas que estavam comigo. A cada investida, novas bombas. O estopim foi quando a Tropa de Choque correu em nossa direção na estreita praça. Estávamos encurralados. Bombas de gás varreram o céu e caíram ao nosso lado, éramos cerca de trinta pessoas. Mais uma vez, corremos.
Pelo outro lado, chegamos à Paulista. No caminho, muitos feridos e detidos. Uma parte dos manifestantes se reagrupou e começou a descer a Consolação. Entendemos que era uma trégua. Ultrapassamos o Cemitério da Consolação quando uma barreira policial se formou no quarteirão seguinte. Entre a hesitação e o medo, os manifestantes fizeram a escolha errada. Mudaram o trajeto e entraram na rua Sergipe. Deram a senha. Quando metade da rua foi alcançada, percebemos que em nossa frente e nas nossas costas só havia a PM. Bombas. Muitas.
Uma senhora desavisada tenta, em vão, acalmar seu cachorro que se assustou. Um senhor anda incólume pela via, com seu saco de pão, sabedor de que tem o perfil de morador de Higienópolis, ele não é inimigo.
No Pão de Açúcar, que fica no entroncamento da avenida Angélica com a rua Sergipe, os funcionários fecham as portas. O cerco policial segue avançando. A porta do supermercado, agora, só abre para quem não tem o “perfil de manifestante”. Ao meu lado, um policial abre a cabeça de Diego com um cassetete. O sangue toma conta de seu rosto e já deixa rastros pela rua. Desesperado, o jovem quer apenas lavar o rosto. O supermercado não abre as portas para uma pessoa ferida, sangrando.
O massacre que pressentimos, agora era realidade. Passava de 21h quando consegui me sentir seguro, longe de qualquer PM. Duas horas escapando de cercos e bombas. No caminho de volta, notícias e boatos se misturam. A grávida que perdeu o filho, o homem que perdeu o olho, o manifestante que perdeu a paciência, a estação que perdeu um portão, o Haddad que perdeu mais uma chance, o secretário de Segurança Pública que perdeu a oportunidade de ficar de boca calada e o Alckmin que nunca perde nada. Eu ganhei algo, o medo de me manifestar. Eles acham que vão ganhar. Acham.