O número de casos de discriminação racial irá aumentar, e isso é um fato.
A medida em que as pessoas negras passam a frequentar, estar presente e reivindicar a participação em espaços e situações até então exclusivas à presença e desfrute de pessoas brancas, esses casos se tornaram ainda mais presentes no cotidiano das pessoas negras – o Brasil não está preparado para o que denomino de novas zonas de contato interracial, aquelas com potencial eminente de deslocamentos de hierarquias raciais que estruturam as relações de poder e que exigem a criação de novos padrões de sociabilidade interracial. Estava tudo muito “bem-organizado” enquanto o elevador de serviço e o quarto de empregada distinguiam, impecavelmente, os lugares destinados às pessoas negras.
Como ativista, quando, em abril passado, uma situação de discriminação racial como a sofrida por Samantha Vitena em um voo da companhia GOL é noticiada eu penso: essa situação, com o mesmo teor e intensidade, poderia ter ocorrido comigo. Bom, se a situação tivesse ocorrido comigo, seguramente, o barraco seria armado em uma dimensão espetaculosa e isso porque, de fato e de direito, racismo é crime. Nunca aconteceu, digamos, em dimensão cinematográfica na versão longa-metragem, mas aconteceu inúmeras vezes na “versão curta-metragem” – ou seja, fui a personagem vivendo o pior papel: a ofendida e violada em meus direitos constitucionais.
Há poucos anos me dei conta de algo absolutamente inconsciente e incorporado ao meu comportamento. Sempre que faço uma compra, eu peço as vendedoras que coloquem a nota fiscal na embalagem da compra. Já presenciei delas diversos olhares de espanto com a orientação e, vez por outra, engato a explicação bizarra: para que não haja dúvida sobre a propriedade daquela compra. Quando me dei conta desse meu comportamento bizarro não irei negar o misto de sentimentos, mas é o tal negócio, como diz o ditado popular, o diabo mora nos detalhes, não é mesmo?
Mas a final de contas que existência infeliz é essa? É absolutamente lógico e trivial que eu devesse estar, antes de tudo, feliz por comprar algo que me saltou aos olhos com a possibilidade de uma aquisição pessoal ou, igualmente importante, atendimento a uma necessidade. Nos dois casos, eis aí uma situação absolutamente trivial. Mas para as pessoas negras a experiência de consumo não é, nunca, trivial e isso é existencialmente avassalador.
Para pessoas negras, o ato de consumir é, em diversas dimensões, uma porta aberta à violação de nossos direitos à existência. Alugar ou comprar um imóvel pode, em tese, acionar práticas discriminatórias e racistas. Matricular seus filhos e filhas em uma escola particular tem um potencial imenso de se tornar um drama racista de dimensão familiar. Hospedar-se em um hotel a lazer ou por motivos profissionais pode desencadear uma cadeia imensurável de enfrentamento ao racismo. Ou seja, o “poder de compra” está, a qualquer instante, subordinado às práticas do racismo e da discriminação racial – não se trata apenas de o mercado não nos querer como consumidores, mas, antes, a percepção de que somos consumidores suspeitos e circunstancialmente toleráveis. Isso é um escárnio sob todos os pontos de vista.
Daí que não convence, e sabemos disso, “colorir” a propaganda. Não adianta contratar o artista negro ou negra com milhares de seguidores para a mais nova campanha publicitária, não adianta o jingle na “batida perfeita” da periferia, não adianta corpos negros alegres em dança e bem maquiados, não adianta tentar esconder, dessa forma, a prática cotidiana do racismo e das hierarquias raciais. Na atualidade, essas estratégias só reforçam o óbvio: não é algo que afirme os nossos direitos, mas uma forma de controle e expressão sobre o que pensam ser o lugar dos negros no consumo – ou seja, estarão presentes, visíveis e expostos quando e como imagino ser necessário o que implica, também, todo o oposto. E é esse oposto que as situações de discriminação racial expõem de forma insofismável.
Por outro lado, se afirmam as instituições que consomem as pessoas negras. O sistema carcerário, com sua imensidão de empregos e cargos públicos – do aparato de segurança pública ao sistema de justiça, parece não ter dúvida do quanto as pessoas negras são, de fato, um “bom negócio”. As políticas públicas sem foco, arremedos de políticas sociais abrangentes, também parecem não ter dúvida sobre o quão lucrativo é o seu “público-alvo”. Por todos os ângulos observáveis, parece não existir dúvida, sobre o quão “lucrativo” pode ser aqueles submetidos a uma educação de baixíssima qualidade, a um sistema de saúde em frangalhos, à uma política de emprego que ignora os desafios de inserir trabalhadores e trabalhadoras cuidadosamente jogados à informalidade do mercado de trabalho brasileiro – pasmem, em 2019, 47,4% dos trabalhadores negros – homens e mulheres, sobreviviam do/no mercado de trabalho informal. Isso não pode dar certo em qualquer lugar do mundo e aqui nós temos a prova.
O estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania Alimentar e Nutricional (Penssan), em 2022, afirma que entre os mais de 33 milhões de brasileiros que passam fome, 70% são negros. Isso é um fato histórico escandaloso, mas também é uma realidade funcional para os meios de comunicação que não se furtam a prática de entrar dentro das casas de negros pobres, para “comprovar” a indigência – famílias negras nesse lugar de personagem materializam o consumo de quem acredita estar fazendo o seu trabalho, mas poderíamos dizer que, na essência, estão “defendendo”, também, o ganha pão de profissionais da mídia. É radicalismo apresentar argumentos como esses? Pode ser, mas os indicadores, o histórico do país e a falta de solução exemplar dos problemas estruturais que afetam os afro-brasileiros exigem algum radicalismo na forma de pensar e de agir também. Pois muito bem, sim, no Brasil, o racismo, em exercício não é tarefa de amadores – os ganhos são imensos e, impecavelmente, profissionais.
Daí que, nesse último mês de abril do glorioso ano de 2023 (já repleto de racismo no mundo inteiro), Samantha Vitena é uma heroína. Ela fez algo, em minha opinião, parecido com o que a ativista afro-americana, Rosa Parks, fez, em dezembro de 1955, na cidade de Montgomery, ao decidir sentar-se em um dos assentos de ônibus que, por lei, era destinado apenas às pessoas brancas. Samantha Vitena, disse “esse lugar aqui é meu”, incluindo a posse do seu instrumento de trabalho – um laptop. Estava, também, investida de seu celular e isso para deixar transparente e registrado para a história que ela tinha, sim, o direito de acomodar sua bagagem e propriedade a vista dos seus olhos e ao alcance de suas mãos. Com esse ato ela demonstrou à sociedade brasileira que uma companhia aérea não é capaz de garantir a sua integridade pessoal, a segurança de um bem pessoal seu e ainda, mais grave, salvaguardar seus direitos como cidadã e cliente.
Em tempo, ao ter sua passagem já paga (estar no lugar que estava não se tratava de cortesia ou gratuidade), importa lembrar que os custos do combustível, o salário da tripulação, incluindo o do comandante da aeronave, a água servida aos passageiros, o sabonete líquido e papel higiênico do banheiro da aeronave, foram pagos porque Samantha estava naquele voo. Ou seja, está tudo errado em escala fenomenal. Errado porque ela é, sem dúvida, uma cliente é, muito mais importante, uma cidadã negra brasileira.
No mais, eu acho que ainda continuarei sugerindo que as vendedoras de loja coloquem os recibos de compra de minhas mercadorias-propriedade sejam colocados dentro das embalagens e isso porque o racismo, no Brasil, não tem qualquer viés amador e eu sei muito bem disso.