Poesia Erótica nos Cadernos Negros

O erotismo está presente na literatura da antigüidade até nossos dias. Sua manifestação se dá segundo determinado meio social concebe, de forma predominante, o corpo. Mesmo nos períodos de forte repressão, como a chamada Idade Média européia, em que aprendemos ter sido de predomínio da igreja católica, houve significativa manifestação do erotismo. Por exemplo, as cantigas de escárnio e maldizer portuguesas são alguns testemunhos de transgressão do moralismo dominante naquele período.

no Quilombhoje:Poesia Erótica nos Cadernos Negros

Quando vemos que hoje o acesso a filmes, revistas, livros, utensílios e serviços sexuais é tão simples, mediatizado pelo dinheiro, podemos nos perguntar: o que resta à arte, em termos de abordagem do erotismo? Antes de nos aventurarmos pelos caminhos desta resposta, coloquemo-nos outra, mais precisa, ao que pretendemos tratar aqui: a poesia acompanhou tal disseminação informativa e excitante do sexo?

É preciso estabelecer que o erotismo é uma transgressão baseada no desejo impedido de encontrar sua satisfação.

Esse desejo de se perder, que trabalha intimamente cada ser humano, difere entretanto do desejo de morrer na medida em que ele é ambíguo: trata-se, sem dúvida do desejo de morrer, mas é, ao mesmo tempo, o desejo de viver nos limites do possível e do impossível. (Bataille, 1987, p.223).

O erotismo na Literatura Brasileira tomou as feições derivadas da “moral e bons costumes” do “faça o que eu digo mas não faça o que eu faço”. Trafegou através dos quatro séculos passados com raras ousadias eróticas, a primeira Gregório de Matos. Os autores que se aventuraram a tratar de sexo em poesia, quase sempre o fizeram às escondidas, apelando para pseudônimos. Suas obras foram relegadas ao plano da má ou subliteratura. Merecidamente? Apesar dos critérios de julgamento estarem comprometidos com a moral vigente, a circunstância de marginalidade temática e perseguição redundava em desleixo, usado até mesmo como disfarce de estilo, como é o caso do Elixir do Pajé, de Bernardo Guimarães, o mesmo autor de Escrava Isaura.

A sociedade escravista tinha o homem branco como centro do poder e dono da moral. Senhor do corpo do escravizado, o patriarca esmerou-se em realizar uma imagem “para inglês ver” e outra para satisfazer-se. Do outro fez seu objeto, enquanto defendia-se com moralismos, auxiliado pelo aparato religioso. Com a hipocrisia fundamentada, a pulsação erótica trabalhou no sentido de elaborar sua vingança. Realizou-se como sátira. Termos ligados ao sexo adquiriram significados fortemente agressivos que, até hoje, servem aos objetivos de uma sexualidade reprimida e por isso problemática. Mas, este não é um fenômeno apenas do Brasil. A Europa, de cuja literatura a brasileira era um ramo, soube reprimir historicamente o sexo e sua linguagem. Contudo, a produção transgressora foi grande.

O sensualismo dos nossos românticos e simbolistas, associado ao modo de ver a manifestação sexual como doença pelos escritores naturalistas, preparou o ambiente dos tempos modernos. Mas, na produção erótica não houve grandes avanços poéticos na passagem para o século XX. As dificuldades de expressão permaneceram. Foi encontrada a forma da malandragem para permitir o trânsito da vertente erótica. Macunaíma é um exemplo. O uso de eufemismo como “brincar” e tantos outros, significando relação sexual, a figura jocosa do “herói sem nenhum caráter” como o apelidou o autor, e outras gingas deram o tom picaresco para a sexualidade. “Viver seria, assim, jogar, sinônimo de burlar”. (Durigan, 1985, p.79)

Falar de sexo será motivo para risos, reflexo da repressão. Ainda assim, por baixo do pano, muita coisa correu mais solta, como as Cantáridas (1933), poemas eróticos-satíricos produzidos pelos escritores capixabas Paulo Vellozo, Jayme Santos Neves e Guilherme Santos Neves, nos quais predominam o deboche e o homossexualismo. Só em 1985 estes poemas foram reunidos em livro.

As ditaduras Vargas (1937-1945) e a militar (1964-1984) reforçaram o moralismo no país e, ao mesmo tempo as zonas de prostituição, aliás uma fórmula secularmente usada para manter o domínio masculino, livrando-o de seus principais pavores: a recusa feminina e o reconhecimento da maior capacidade orgástica das mulheres. Afinal, na prestação de serviço, prostituta não tem direito ao orgasmo.

Por outro lado, não é tradição dos movimentos revolucionários colocarem o sexo em suas propostas. Nisso assemelham-se àqueles que combatem, mantendo-lhes os pressupostos moralistas. Os movimentos sociais contemporâneos, sendo setoriais, não encaram a vida como um todo integrado. Prevalece a visão de ser humano dividido entre o corpo e a alma (ou espírito). O primeiro, menos importante que o segundo, deve ser mantido sobre severo controle. O Movimento Negro segue o mesmo diapasão, desprezando a sexualidade enquanto tema, não a enxergando em sua análise do racismo, a não ser como denúncia à “exploração sexual da mulher negra”. O puritanismo ainda permeia o discurso militante.

A poesia apresentada na série Cadernos Negros, correndo à margem da poesia oficial branca, apresenta, em sua busca de unidade subjetiva, uma grande variedade formal e de conteúdo. Com relação a este último, o erotismo vem se destacando na poesia de alguns autores. Sendo Literatura Brasileira, sofre influência de condicionamentos gerais. Ainda há palavras proibidas de adentrar a poesia que, para alguns, constitui um verdadeiro santuário da linguagem, distante da fala cotidiana. As pesquisas dos poetas que se pretendem na vanguarda não foge à regra. Velado, um peso de moralismo seleciona vocabulário e temas. Mas, como trafega na contramão, por essência, marginalização e opção dos autores, a poesia negra concebe certos referenciais distintos, dentre os quais destacam-se a religião dos Orixás e a luta pela libertação originada nos quilombos. Assim, questões como o embate civilizatório (nele contido a diferença de concepções sobre o corpo) adentram o espaço poético pelo ângulo do erotismo:

De quatro, Zeus figura
em (ex)cultura nativa
o(culto) orixá Exu
vai comendo-lhe o cu
(Márcio Barbosa – CN 13, p.46)

Orixá mensageiro e princípio dinâmico que rege o universo, além de emblema da virilidade, Exu atua na poesia negra como impulso libertário. Ainda que a sombra do sadismo se insinue, dando à relação sexual seu tom combativo (afinal, sexo e violência é o que mais se propaga), é o prazer em sua dimensão maior o que pretendem os herdeiros (e desordeiros) dos escravos. A história e a dominação cotidiana marcaram o corpo como objeto de uso do branco. A via erótica da poesia negra atua no sentido da ruptura com a essa continuidade e de outras formas de repressão física e psicológica. Na volúpia revela a seu poder de seduzir. Reconhecer nos órgão genitais esta capacidade é redirecionar e reavaliar hábitos e costumes.

“Tesão”
Teu falo é um facho
Fascinante.
Eu me encrespo
Sempre…
Teu Facho é um fato
Irreversível!
(Regina Helena da Silva Amaral – CN 9, p.32)

 A liberalização sexual da linguagem situa o problema da distinção entre o erótico e o pornográfico. Os especialistas divergem neste ponto. Se para José Paulo Paes e Afrânio Coutinho o “valor artístico” é que traça a divisão, para autores como Maria Carneiro da Cunha isto não é tão simples.

Tendo em vista que tudo é rentabilizado, torna-se difícil, a partir de critérios meramente estéticos, distinguir o que é produção pornográfica (ligada ao aspecto venal, por definição) e produção erótica. E se a primeira está fortemente impregnada pela ideologia conservadora, a segunda também dela não escapa. Ambas podem servir de veículo para reforçá-la. (Cunha,1987, p. 34)

O francês Boris Vian, partilhando da mesma opinião, recusava a admitir como erótica toda literatura ligada à violência sexual, sendo assim, contrário às posições de George Bataille, que vê na violência o princípio básico do erotismo. A distinção complica-se um pouco mais quando consideramos a sensualidade, esta passagem do amor problemático – em que o sofrimento é o resultado do impedimento – para um amor erótico, prazeroso e integral. No poema que se segue:

Ejacoração
Quando tua ausência se multiplica em dias
eu me divido em saudades
consciente ou não
 e de resto sobram poemas
quando a vida devolve oficialmente tua presença
o coração dá voltas
e dispara ejaculando promessas de amor
(Jamu Minka – CN 5, p.32)

ao ejacular promessas de amor, este “coração” absorveu um atributo do órgão sexual masculino em sua expressão última do prazer. A carência termina, transformando-se em “promessas de amor”. Esta relação entre os dois órgãos estreita-se em

Luz na Uretra
O coração na cabeça do pênis
sístole e diástole sou-te
na vagina
e
num vôo riacho
espalho-me
via láctea
no teu
infiníntimo.
(Cuti – CN 9, p.120)

englobando o próprio sujeito enunciador num fluido astral em que o esperma se transforma (a Via Láctea), apontando para a dimensão totalizadora do sexo.

A questão do vocabulário, nesse estreitamento de sentidos, seria fundamental? “Mesmo no grupo artístico, podemos separar obras de conteúdo erótico sem o uso de palavras nem cenas que tornem visual o sentido erótico, mas que transudam erotismo ou sensualismo” (Coutinho, 1979). Se a palavra explícita pode estar ausente, sua importância é relativa. Ao compararmos estes dois poemas:

Dois corpos
(em chamas)
Fez-se a nudez
Ávidos
À
 Vida
Em um mergulho
Solar
(Roseli Nascimento – CN 15, p.76)

Te amo
A lembrança é concreta
Teu hálito roça-me a face
O desejo afasta o ridículo
No suor o visco do esperma
Na boca o gosto
do falo
Indecentes
Tuas mãos
 Tateiam meu corpo
o orgasmo varre
valores, pecados
Te amo.
(Sônia Fátima da Conceição – CN 17, p.72)

podemos perceber a dimensão idealizada que os conduz. Porém, o segundo, ainda que tenha como título e final a declaração de amor que a lembrança desencadeia, contém os elementos explícitos do envolvimento sexual, dando-lhe a carga de concretude do encontro integral dos seres, incluindo aí a falência do pecado diante do orgasmo. E o que garante isso é o uso do vocabulário. Mas, se falamos de concretude erótica, sua realização se dá mais no movimento de aproximação com o ato sexual em si.

“Ice-Dream”
Teus lábios… framboesa.
Meu sorvete… chocolate.
Você chupa…
A gente se aquece, se funde…
O gelo derrete…
Você amolece,
 Eu me enrijeço.
Teus lábios… morango.
Minha cobertura… caramelo.
Arfando… gemendo,
Meu creme transborda,
Em jorros de emoção,
Prazer… e alimento.
(De Paula, W.J. – CN 7, p.40)

Oscar Gama Filho, na apresentação das citadas Cantáridas(5) , assinala que naquela obra a riqueza de sinônimo é proporcional à repressão. No citado poema de D. Paula, para a metáfora do título o autor fez questão e indicar, na publicação, tratar-se de “dream mesmo, sonho”, pois reserva para o corpo do texto o uso de expressões comestíveis que, além de projetar o significado gustativo no ato sexual, situa-o como “alimento” no sentido espiritual, pois trata-se de “jorros de emoção”. Esta burla dirige-se ao sentido integral do humano, rompendo com a visão parcial, reducionista. A felação, ato de prazer, firma a posição transgressora do erotismo enquanto resultado da cultura em face dos fins procriatórios da natureza. Sem a utilização do vocabulário específico, integra o sensual e afetivo. Fica patente que a questão não é apenas de uso da palavra proibida, mas da concepção de sexo que o texto veicula. A mesma coisa se dá com expressões da cultura afro-brasileira. Elas podem ser utilizadas literariamente para estereotipar os próprios descendentes de africanos no Brasil.

Quando se discute a legitimidade da expressão Poesia Negra, tem-se costumeiramente apontado para aspectos relacionados ao combate contra o racismo e a miséria. Esquece-se, contudo, que miséria significa também ausência de prazer, incluindo aqui o sexual. A relação amor/morte, refletida na produção que insiste em relacionar sexo com violência, originária da antiga Roma, vai encontrar certa oposição por parte destes poetas. Assim, mesmo quando diante dos aspectos descritivos do ato erótico, haverá esse dado do encontro total:

Tempos de Amor
1) A boca em molhado círculo
envolvendo a pica
ou beijando com suavidade imensa
 a suada virilha
2) A língua tesa enfiada
na bunda
ou buscando em dança perfeita
 da buceta o salino sabor
3) Em dois tempos o desejo inunda
corpos marrons em marés de amor
(Márcio Barbosa – CN 13, p.43)

Os “corpos marrons em marés de amor” remetem à imensidão oceânica a partir da melanina, recuperando, após a fotografia dos atos constitutivos de uma relação (e não de um coito), o sentido da integração cósmica. Neste aspecto, há que se atentar também para a realização rítmica da poesia, além das referências culturais da cultura negra. Afinal, o fluxo do sexo tem seu ritmo.

você entra…
você sai…
 eu sus… eu sus…
você vem… você vai… eu piro… piro…
você faz tudo
 você entra… você sai…eu hummm… hummpmmh
você vem…
você sai…
eu deixo
 você vem… você entra… você sai..
eu deixo
você entra… você vem… fundo fundo
eu fecho
você jazz.
(Marise Tietra – CN 5, p.59)

Com habilidade, a poeta faz o ritmo revelar a sua dimensão musical. Ao dar o fecho ao poema com o verso “você jazz”, ressalta a sua referência cultural, recuperando o significado erótico atribuído à origem da palavra “jazz” (pênis). Por outro lado, o verbo jazer (permanecer deitado como morto) teve sua estrutura significativa alterada por um “z” a mais. Seu sentido ganhou o intenso movimento musical do improviso. Outros recursos sonoros serão utilizados para aproximar a palavra do movimento sensual.

Mar Glu-Glu
bunda que mexe remexe e me leva
num belo novelo de apelo e chamego
me pego a pensar que essa vida
precisa envolver como tu
nesse dengo gostoso que nina e mastiga
meu olho que vai atrás
sonho carnudo embalando as ondas ou dunas colinas montanhas veludomoventes do caminhar
balanço de exuberância a marolar a distância…
a bunda é mergulho e murmúrio no mar glu-glu
a forma do espaço repleto e nu.
(Cuti – CN 7, p.34)

O uso das nasais “n” e “m”, associado à acentuação das palavras, busca traduzir o fluxo do caminhar. A mensagem dirige-se à zona erótica da estética brasileira proveniente de um povo africano (os Bundas), cuja saliência do traseiro era destacada e apreciada como fator de beleza. O voyeurismo (excitação pela ação de olhar zonas erógenas) do poema traduz um dos hábitos mais freqüentes do cotidiano e se contrapõe também à exploração dos estereótipos. O racismo, baseado nas características do branco, inverteu os valores africanos. Quem tem nádegas proeminentes, apesar da admiração, passa a ser rotulado pejorativamente, em flagrante despeito. Haja vista que hoje existe no mercado calcinhas com enchimento traseiro.

A família, a escola e a religião têm muita dificuldade para trabalhar com a questão do erotismo. O tom repressor que norteia estas instituições fazem da linguagem relacionada ao sexo algo pesado, científico, assustador. O poeta sabe disso. Absorve em seu trabalho, numa postura antropofágica, o abrigo familiar, revelando, com certa ironia, seu erotismo camuflado:

Visita
Gosto de morar em você
 De me ter entre suas negras colunas.
Gosto de me ter em você,
Escancarando essa porta hospitaleira,
Passeando, perdido, pelo corredor…
Insano, feliz
Entrando e saindo…
Saindo e entrando, sem destino…
Suando, umedecendo, molhando…
Até me derramar em contentamento
 No mais íntimo dos seus aposentos.
Adoro morar em você, meu lar.
(Rio de Janeiro 1983)
(De Paula, W. J. – CN 7, p.42)

Em outro momento dos Cadernos, a alusão institucional ganha caráter de reversão radical dos valores. A paródia à oração atua no sentido de liberar o impulso erótico:

O Prazer Nosso
Amada minha que estais no cio; cultuado seja o vosso corpo; venha o prazer ao nosso leito; sejam saciadas nossas vontades, sem tabeliães e sem véus. Um amor pleno de poesias gozai hoje; desfrutaremos nossas querenças; um minuto sequer não percamos, discutindo leis que nos têm reprimido. Vamos copular com emoção, porque amar nunca fez mal… Axé!
(Oubi Inaê Kibuko – CN 11, p.63)

Ao finalizar com a expressão “Axé”, o poeta deixa transparecer o embate entre culturas. Seu referencial constitui uma teogonia diferenciada. Os Orixás, sabe-se, não são assexuados, fenômeno que ocorreu com as entidades da igreja católica, em que os desejos da carne passam a ser vistos como uma doença da alma que é preciso extirpar para salvá-la da danação. Daí que, em vez do domínio de si, o Cristianismo recomende aos fiéis a renúncia de si, a abdicação dos desejos em nome de uma pureza cujo modelo é a virgindade. Sob a égide do mito da Virgem procriadora, mas de todo dessexualizada, a carnalidade feminina é desterrada para a ordem do demoníaco. (Paes, 1990, p.18).

Assim, ao fazer uso de certos elementos religiosos, os poetas traçam a reversão dos significados:

(Poema da Comunhão da Carne)
Querer-te como rima preciosa uma pedra esculpida um ritual de amor
e arte em negrura colorida. Sim
querer-te o corpo como um templo
e cultuar-te – assim sagrada –
a salgada e rubra hóstia da vagina
(Márcio Barbosa – CN 11, p.45)

Nessa mesma linha religiosa, demarcando seu território referencial segue

Geometria Bidimensional
Confluência das coxas
Encontro pleno da geometria
Há um triângulo isóscele
triângulo isóscele
Triângulo isóscele pede
isóscele padê
pode
pede posse
(padê)
(Miriam Alves – CN 17, p.50)

Da figura geométrica ao padê (ritual com oferenda a Exu), a hesitação encontra o sagrado e, o impulso erótico, a permissão (pode posse). O fonema “p”, detona o som da encruzilhada.

Observa-se nas poetas negras uma maior aproximação ritual com a poesia e, consequentemente, a tendência a não distanciar a sexualidade do todo. “Na mulher esta exigência de separação de especificidade é muito menor. Afeto, ternura, emotividade e erotismo caminham juntos.” (Alberoni, 1988, p. 201). Podemos juntar aí a religiosidade. Entretanto, a cultura e a comunidade afro-brasileira, sendo essencialmente matriarcal, impõe sua resistência ao machismo. Não há limites sexuais rígidos para o desenvolvimento de uma pessoa no Candomblé, baseados na predominância do macho. O mensageiro dos Orixás não é privilégio dos homens. Quando lemos:

Exu
Lábios vermelhos
Muito vermelhos
Acesos e acesos e haciendo-me entrar
– vem vem me ver por dentro
E eu vou à fenda – acesso labiríntico a chamar
A brasa – chama rubra e corpo negro
(Abílio Ferreira – CN 13, p.63)

é na mulher que a entidade se manifesta (inclusive em cores: vermelho os lábios e negro o corpo), uma projeção que libera o desejo masculino. Também poder-se-ía aventar a hipótese de reminiscência do mito da mulher possuída pelo fogo infernal e o homem como vítima da sedução. Mas, o texto está isento de conotações proibitivas ou de culpabilidade. Além do mais, a figura de Exu no título desautorizaria tal interpretação.

O aprofundamento de uma consciência negra no Brasil pressupõe uma concepção do corpo distanciada da divisão do ser. A poesia negra contemporânea elabora, dentre outras coisas, esta possibilidade. Sabe-se que as pressões hipócritas contra a sexualidade existem, confundindo-a com prostituição. Robert Darton, discutindo a pornografia do século XVIII, na França, alerta:

Se a pornografia é um gênero, ela é um gênero tão misturado, que qualquer tentativa de definir o gênero ‘puro’ deve necessariamente falhar. Suas impurezas forneciam justamente os elementos que tornavam o sexo tão bom para pensar”(Darton, 1995, p. 5-7)

Ainda que os desvios comerciais se processem, a hipocrisia é a pior solução. A espécie humana é sexuada e todos os aparatos que nos impeçam de sociabilizar o instinto caem por terra. E no erotismo fica evidente a fragilidade humana e sua grandeza:

Íntimo Véu
Arregaço o ventre
corcoveio no ar
gemo
Você?
Tira o meu último véu.
(Miriam Alves – CN 9, p.43)

Os múltiplos véus que compõem o mascaramento social são historicamente ameaçados pela poesia. Ao manipular a palavra, o poeta reconstrói as relações, reorganiza as noções desencontradas, permitindo-se a abrangência das forças que entram na relação entre as pessoas. Reconhece que, onde tanto drama se faz, é possível sorrir e gozar.

Safari
Aquela tigresa é tanta
que me almoça e janta
faço de conta que a sala é ponto
na geografia da África
e o tapete vira suave savana ao entardecer
quando a pele da noite vem camuflar
nosso safari safado.
(Jamu Minka – CN 7, p.66)

O sentido erótico da expressão comer e seus sinônimos, mesmo sendo milenar, traz na Poesia Negra, como bem exemplifica este “Safari”, a procura de satisfação para a fome íntima de identidade, com a “geografia da África”, as “savanas” e a “pele da noite”.

Esta pequena amostragem da poesia publicada na série Cadernos Negros, criada em 1978, e desde 1985 sob a responsabilidade do Quilombhoje-Literatura, dá conta do quanto se tem feito e do quanto há para se revelar de nossos poetas. Se o moralismo propõe más influências deste veio erótico da Poesia Negra, lembremos que a literatura não foi feita para substituir a realidade, mas para realçá-la em seus momentos significativos. Se a leitura de poemas trágicos não leva ninguém à tragédia, o erotismo poético não terá também o poder mobilizador de arrastar quem quer que seja para perdições imorais. Mas libertar de preconceitos, certamente! E, sobretudo, liberar nas palavras o erotismo e a sensualidade tolhidos pela escravidão e o racismo.


Referências bibliográficas
1. ALBERONI, Francesco. O erotismo. Rio de Janeiro : Rocco, 1988.
2. BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre : L&PM, 1987.
3. CADERNOS NEGROS. São Paulo : Quilombhoje, 1985-1997.
4. COUTINHO, Afrânio. O erotismo na literatura: o caso Rubem Fonseca. Rio de Janeiro : Cátedra, 1979.
5. CUNHA, Maria Carneiro da. “Os espelhos de Eros”. Leia, março, p. 34, 1987.
6. DARTON, Robert. “Inferno da Biblioteca em Paris”. Mais! Folha de São Paulo, p.5-7, 9/7/1995.
7. DURIGAN, Jesus Antônio. Erotismo e literatura. São Paulo : Ática, 1985.
8. GAMA FILHO, Oscar. “Histórias fesceninas e poemas cantáridos” In: Vellozo, Paulo et al. Cantáridas e outros poemas fesceninos. São Paulo : Max Limonad, 1985.
9. PAES, José Paulo. “Erotismo e poesia: dos gregos aos surrealistas” In: Poesia erótica em tradução. seleção e tradução de José Paulo Paes. São Paulo : Companhia das Letras, 1990.

 

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