O som dos grilhões

Enviado por / FontePor Marcelo Caetano


nossos sons vêm de muito, vêm de antes
de quando éramos reis e rainhas
donos de nossas terras

cultuávamos nossos deuses e celebrávamos nossas vidas
mas eis que fomos sequestrados, desgarrados do bando pelo mundo
éramos tantos e, mesmo depois de separados, permanecemos mais
vocês roubaram nosso chão, proibiram nossa fé
aprisionaram nossos corpos, desprezaram nossas mentes
mas nunca foram capazes de calar nossos gritos
porque sempre foi o ritmo o que nos manteve vivos
a lembrança dos atabaques, da nossa ancestralidade
os sons de um tempo, os sons ainda carregados pelo vento
que sopram a memória dos que se foram, dos que vieram obrigados
como coisa traficados,

nós que fomos pelos navios despatriados, pelos senhores humilhados
pelo chicote machucados, pelo Estado abandonados
pela pobreza destroçados, pela polícia espancados
pelos justiceiros amarrados, pelo genocídio aniquilados

nós fomos, pelo ritmo e pela poesia, salvos

porque mesmo amarrados não fomos calados
espalhamos por aí nossas vidas, nossa cor, nossas dores, nossa luta
porque preto em todo lugar é preto
na hora de apontar o suspeito, de lavar o banheiro, de negar a entrada, de fazer a piada
e se eles riem sem moderação
nós fazemos música que é pra não entrar em extinção

a dor das townships, a dor dos fisicamente segregados
também ecoa no peito de todo favelado que nunca sabe quando será abordado
se aqui temos claudinho

lá eles tem mango groove
pra lembrar que o coração ainda bate, mesmo quando o corpo cansou de apanhar
que bem lá no fundo ainda tocam as marcas deixadas pelas feridas nunca cicatrizadas
as guitarras do reggae, quando desce a nota e faz a curva
entram pela esquina que dobra logo ali no atlântico
e viram baião, bem no meio do sertão
podia ser kingston, mas chamamos de “São João”
bem no meio do haiti, entre revolução, ditadura e terremotos
ainda se escutam as notas da Rara
mesmo que os jornais só estampem a miséria que alimenta a carnificina
criam o urubu que se aproxima e vai direto na carne
eles querem nos ver, de novo, sem liberdade
em são paulo, anúncios estampam: contrate um haitiano!
e o sinhôzinho vai lá escolher o que mais lhe apetecer
seguindo a receita de séculos que já prescrevia
preto bom é o da canela fina!
e é por isso que ainda persistem os nossos tambores
a prova de que não fomos apagados
mesmo quando diariamente exterminados
não se esqueçam: segregaram nossos corpos, mas nunca nos silenciaram!
o lundum embalava nossas resistências
a imagem viva dos batuqes bantos ainda a correr bem no meio das veias

pelos campos de algodão do mississipi
a plantation ainda sobrevivia
erguida sobre a música que fazia suportar a jornada
vamos cantar nossa aflição que nunca pôde ser chorada
e fez-se o blues!
seguindo a estrada que liga os negros nessa era dita como moderna
descendo o hemisfério, logo um pouco mais abaixo
entre umbigadas e pernadas, o tempo marcado no pandeiro
na mão, só as palmas
acompanhando os cantos de Tia Ciata
que enquanto a comida com as mãos preparava
nos pés, os caminhos do samba criava
pra nunca esquecer das nossas riquezas roubadas
dos nossos reinos explorados
do nosso ouro saqueado
sopramos os nossos metais
e chamamos de jazz
fazendo do improviso a nossa mágica, o nosso rito

porque toda quebrada tem o som que faz o barraco balançar mais forte
que faz o baile lotar mais cedo, e a noite durar mais tempo
dos bongôs da bachata ao batidão do tambor
sempre tem o batuque que faz o corpo esquecer quem é e lembrar de onde vem
o barulho do trovão é xangô afinando o cavaco
os raios são iansã durante um ensaio
o som que vem de dentro das conchas é iemanjá a sussurrar
porque o compasso que rege o mundo é dado pelos filhos de oxalá e da mãe áfrica
que com raízes firmes ainda alimenta seus galhos espalhados
construindo laços que não podem ser quebrados
pontes que não podem ser destruídas
porque inscritas na carne, marcadas a ferro pelo passado compartilhado
uma história que não se cala, uma história que se canta
porque mesmo desmembrados, divididos e subtraídos
ainda nos restará sempre o ritmo
e é por isso que resistimos!

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