Polícia notifica jovens em shopping por reconhecer o ‘naipe’

por Gisele Brito,

São Paulo – O grupo com oito rapazes só andava. Mas quando chegaram, por volta das 17h, todos sabiam que eram eles. Os seguranças, que já estavam descrentes na “ameaça” do rolê, começaram a fazer sinais. “Fica de olho”, disse um para o outro. Eu também sabia. Havia chegado uma hora antes e circulado pelo shopping Center Norte, cujo slogan é “Shopping da família”.

A maioria dos clientes e dos vendedores era branca, às 15h30. Nenhum dos que circulavam entre as lojas usava tênis colorido de corrida. Quando eles chegaram, todos sabiam que eram eles porque usavam esses tênis de cor berrante, camisetas com estampas coloridas, bonés e correntes de ouro. Um figurino de R$ 1.000. E tinham jeitão que avisava: era um rolezinho.

Fora a indiscrição da indumentária do grupo, não faziam nada diferente de quem vai passear num shopping. O primeiro que veio me cumprimentar tinha os olhos quase-verdes. “Mas a gente é tudo afrodescentente. É tratado do mesmo jeito”, disse um dos organizadores do Rolê no Center Norte, Rodrigo Alexandre, de 17 anos, depois de o grupo ter sido abordado pela polícia.

Enquanto apertávamos as mãos no estacionamento, fomos avisados que não podíamos ficar parados ali. Enquanto procurávamos um lugar na área externa para sentar, formos cercados por seguranças e começaram as ameaças. “Aqui isso não vai se criar, não. Aqui a gente vai quebrar as pernas de vocês, nem vem.” Calmos, os rapazes continuavam a caminhar. “A gente só veio pegar as novinhas. Estamos na paz”, respondiam.

O “diálogo” foi curto. Logo, dois carros da Polícia Civil assumiram. Homens vestidos com o uniforme do Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos (Garra) e portando armas de grosso calibre mandaram o grupo, inclusive a repórter, encostar. Só depois de me identificar fui liberada.

O shopping Center Norte obteve uma liminar para impedir o rolezinho.Por conta disso, os policiais compareceram para cumprir a ordem judicial, segundo eles acionados pelo shopping, que afirmou que a iniciativa era da própria Polícia.

O delegado, que não quis se identificar, já sabia quem eram os rapazes por meio de suas contas no Facebook. Os policiais tinham um caderno com cópias de conversas de alguns dos organizadores do evento. Assim que chegaram perguntaram por um dos rapazes, menor de idade, que teria postado em sua página pessoal a foto de um carro da polícia capotado.

O policial à frente da operação perguntou a ocupação de alguns e como eles tinham comprado os tênis que usavam. E disse que os rapazes estavam sendo investigados pela participação em outros rolês.

Todos os rostos, incluindo os dos menores de idade, foram fotografados por vários policiais, com a ajuda de celulares. Nenhum deles foi levado para a delegacia. Apenas dois deles tinham mais de 18 e tiveram de assinar uma notificação entregue por uma oficial de Justiça que já estava no local. Caso participem de outro rolezinho, terão de pagar multa de R$ 10  mil.

“Eles disseram que a mãe da gente vai ter que vender a geladeira, o fogão tudo para pagar isso aí”, disse P. L, de 15 anos.

Rodrigo argumentou que o grupo não fez nada, não interrompeu as atividades do shopping e que a orientação posta na rede social, em caso de grande comparecimento, era a transferência para o Parque da Juventude, próximo do centro de compras. Eles alegaram não terem sido comunicados da liminar, por isso, mantiveram o evento.

De fato, a movimentação do shopping estava normal. Questionados, alguns clientes disseram nem saber da agenda. Às 16h, horário marcado para a chegada dos participantes, carros com famílias e idosos procuravam vagas no estacionamento. Um casal em um Mercedez branco conversível teve de dar quatro voltas até achar um lugar.

Os rapazes argumentaram que o rolezinho, que teve 1.267 confirmações, nem chegou de fato a acontecer. Disseram acreditar que só tinham sido abordados pela polícia em função de seu “naipe” – referindo-se ao próprio estereótipo. “Maior discriminação, se a gente fosse boyzinho isso não ia estar acontecendo.”

Depois de alguns minutos rendidos no estacionamento, mais dois meninos chegaram. Outros foram avisados para não ir ao shopping, porque estava “moiado”, “cheio de verme”, gírias para complicado e policiais.

Caique Gonçalves, um dos “de maior” presentes, contou que a orientação para os participantes era mostrar que o grupo sabia se comportar. “A gente já tinha passado lá no Facebook que não era para ninguém tumultuar, que era para agir na disciplina. Para mostrar pra mídia, pros boyzinhos que a gente é morador de favela, mas sabe se portar, não é só a roupa que a gente usa que vai passar quem a gente é”, disse.  “A gente sabia que ia acontecer alguma coisa, mas a gente veio mesmo para representar”, disse.

Depois que a polícia deixou o local, meninas se juntaram ao grupo de rapazes. Cantaram funk, tiraram foto e foram para o Parque da Juventude, cheios de marra. “Ainda bem que a mídia apareceu, se não a gente já ia apanhar”, acredita P.L. “A gente só queria conhecer pessoas, mas representamos. Aqui é moleque zica mesmo”, disse confiante de não ter feito nada de errado.

Fonte: Rede Brasil Atual

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