Por um tempo mais feminino, por Sueli Carneiro

(Foto: Marcus Steinmayer)

Aprendemos a administrar a escassez e, como Cristo, temos multiplicado o pão em nossas mesas. Milagres que os nossos economistas não sabem realizar

Por Sueli Carneiro

Um novo milênio nos convida a balanços e o artigo de Marta Suplicy da última sexta-feira nos instiga, como velhas feministas, a revisitar a trajetória de luta das mulheres e a deixar para as novas gerações um registro do nosso tempo e sobretudo dos desafios que as jovens de hoje e de amanhã terão que enfrentar para a consolidação da eqüidade de gênero e de raça.

A primeira angústia que nos atormenta é a pequena presença de mulheres jovens no movimento. Um baixo engajamento, típico de quem desconhece a privação de direitos, na proporção em que as gerações anteriores de mulheres experimentaram.

Pensávamos que a esta altura do campeonato estaríamos todas articuladas, como numa corrida de bastão, em que as mais velhas seguiriam na frente, já no limite de suas forças, porém confiantes, pois um batalhão de jovens aguerridas nos acompanhava de perto, prontas para, no momento certo da corrida, pegarem o bastão e seguirem em frente, com a velocidade, a garra e a vitalidade que só a juventude tem.

 

No entanto, na maioria das vezes olhamos para trás ou para o lado e quem encontramos é aquela mesma companheira de ao menos duas décadas atrás, com o semblante cansado das lutas travadas e do longo caminho percorrido.

Rosiska Darcy, em seu artigo ‘‘Boa sorte à nova geração”, diz que, como ex-combatente, olhando as novas gerações, pensa: ‘‘Quem nasceu com a luz elétrica não tem medo de escuridão”. E completa: ‘‘É um pouco assim que a minha geração se comporta quando fala do feminismo, quando descreve para uma juventude blasée e descrente um tempo tragicômico em que mocinhas não saíam sozinhas, brigavam com os pais para poder estudar, fumavam escondido, casavam virgens sem saber o que as esperava”.
As mulheres de nossa geração compreenderam o sentido das noções de liberdade e igualdade, por meio da sede que a ausência delas em nossas vidas provocou. E no processo de luta por liberdade e igualdade descobrimos que, para conquistá-las e mantê-las, era preciso não apenas muita disposição de luta como também uma vigilância permanente para defendê-las, porque liberdade e igualdade são valores que estão sempre sendo ameaçados por diferentes ideologias: fascismo, neofascismo, por diferentes variações do machismo, pelo racismo e as discriminações étnicas e raciais, pelos fundamentalismos religiosos, pelo neoliberalismo. Ideologias que invariavelmente colocam em risco as conquistas das mulheres. Por isso um outro valor que se tornou para nós inegociável é a democracia, único antídoto de que se dispõe contra as diferentes formas de autoritarismo presentes no mundo.

Fomos educadas para cuidar dos outros, de nossos companheiros, de nossos filhos, de nossos pais. Durante muitos séculos a obrigatoriedade desses cuidados foi fator de opressão que, paradoxalmente, desenvolveu em nós um forte sentimento de compaixão que temos a aportar a um tempo mais feminino.

Fomos por séculos confinadas nos ‘‘espaços femininos”: a cozinha, o lar, os haréns onde aprendemos a compartilhar dores, medos e inseguranças desconhecidas pelos homens e elas nos ensinaram um outro tipo de sociabilidade que devemos aportar a um tempo mais feminino. Compartilhar é um verbo que as mulheres conjugam mais do que os homens e de um jeito mais doce. Às vezes fazendo doces para adoçar os homens e os filhos.

Aprendemos a administrar a escassez e como Cristo temos multiplicado o pão em nossas mesas. Milagres que os nossos economistas não sabem realizar. Com isso aprendemos mais sobre solidariedade e fraternidade. Contribuições que temos a dar a um tempo mais feminino.

Fomos escravizadas, discriminadas e inferiorizadas racialmente. Arrancaram os nossos filhos de nossos seios. Nos obrigaram a amamentar e criar filhos que não eram nossos. Essa experiência brutal nos ensinou em primeiro lugar o apreço pela liberdade. Nos fez descobrir que ninguém é racista por natureza, aprende-se a sê-lo. Porque pudemos assistir àquelas crianças brancas, que alimentamos e fizemos adormecer confiantes em nossos braços, se tornarem feitores, comerciantes de carne humana, torturadores de negros revoltados e estupradores de escravas. E compreendemos que, se podemos educar as pessoas para discriminar e oprimir, será possível também fazê-las aprender a respeitar, acolher e se enriquecer com as diferenças raciais, étnicas e culturais dos seres humanos.

A valorização da diferença torna-se então um pré-requisito para a reconciliação de todos os seres humanos. O princípio capaz de fazer com que cada um de nós com a sua diferença possa se sentir confortável e ‘‘em casa neste mundo”, pertencentes que somos todos à mesma espécie humana. Essa missão civilizatória é talvez o ponto mais importante da agenda das próximas gerações.
Então, meninas, aceitem esse bastão porque ele lhes oferece a oportunidade de, como guerreiras da luz, travarem o bom combate. Pelas causas mais justas da humanidade!

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