Por uma consciência humana

Há muitos séculos, desde a célebre “descoberta” do Brasil, por Pedro Álvares Cabral e, por consequência, o surgimento do advento escravocrata dos Negros (africanos) trazidos para a nova terra em porões de Navios denominados de Navios Negreiros que os negros passaram a sofrer, neste novo solo, todo tipo de tortura, tratamento desumano, discriminação, preconceito permeado pelo ódio de uma classe social denominada branca, abastada, intelectual, detentora da moral, da ética, dos valores cristãos. Respaldados em todos esses conceitos eles se apropriavam das leis, dos empregos, dos bens materiais, dos direitos políticos e civis; ou seja, eles detinham todo poder.

Enviado por Helena Monteiro via Guest Post para o Portal Geledés  

Já a outra classe social, formada por negros, por seus descendentes (atualmente chamados de afrodescendentes); pelos despojados de origem portuguesa – país europeu com grande poder de conhecimento marítimo durante o período da colonização do Brasil, e pelos índios (sobreviventes dessa época) – cabiam a escravidão, as formas e relações de trabalho desumana, a expiação do ódio dos abastados. Assim sendo estes entregues ao analfabetismo, a negação de “direitos”, fatos que fizeram com que muitos negros e seus descendentes após à assinatura da Lei Áurea, suposta Lei da Abolição da escravatura, pela Princesa Isabel, filha de Dom Pedro II, no dia 13 de maio de 1988 imaginassem que haviam enfim conquistado a tão sonhada “liberdade” no mais amplo significado e representatividade de ganhos que eles poderiam adquirir.

Contudo, ocorreu um grave engano, os negros ficaram expatriados, sem meios de trabalho; à mercê da própria sorte ganharam vilas, campos, passando a trabalhar; outra vez, para a mesma elite. Sendo submetidos a outro tipo de escravidão, a outras formas de trabalho, também degradantes, com cargas horarias intoleráveis e pagamentos irrisórios; limitando estes a adquirirem conhecimento, ao acesso à leitura, à cultura, à arte, aos direitos civis, políticos, sociais. Surgindo, assim, uma outra forma de escravidão não menos penosa, não menos gritante, não menos nefasta do que a primeira.

Entretanto, passaram-se anos, décadas, séculos e alguns negros, enfim, conseguiram se alfabetizar (ter acesso à escola), arranjar outros tipos de ofícios e arranjaram meios de adentrar na camada social pertencente, exclusivamente, a elite – branca. Alguns se formaram, conquistaram seus direitos civis, políticos, como votar e ser votado e foram aos poucos saindo das “vilas” e ganhando outros espaços e, tendo acesso à informação. Episódios esses que não agradava a elite, pois temia o risco de perder seu “sangue azul”, perpetuando assim a segregação, onde o branco não podia se casar com o negro, mesmo que este tivesse galgados alguns degraus sociais. Os brancos podiam sim usá-las sexualmente – a famosa prostituição; mas as mulheres negras não serviam para casar, ter filhos, formar família, ter uma profissão. Estas tinham que entrar pela porta de trás da casa do branco, realizar serviços domésticos ou, muitas das vezes, sexuais, quando os apetitavam.

Por que será que ainda existem nos prédios os Elevadores Sociais e o Elevadores de Serviço? Já pararam para pensar? Respondo-os, então: resquícios da escravatura. Pois está embutido aí a separação, mostrando uma divisão, tendo em vista que a maioria dos trabalhadores que prestam serviços caseiros, como: cozinheira, babá, jardineiro, etc., são em sua maioria, afro descentes.

Enfim, travamos muitas lutas até chegarmos ao século XXI. O século em que supúnhamos que seria extinta a divisão de classes sociais, onde viveríamos numa sociedade sem preconceito e ou discriminação; sejam raciais, sexuais, políticas, sociais e cunho religioso. Seria o século do comportamento/atitudes elevadas, das relações humanizadas, da era da comunicação e da socialização do saber. Afinal, a Constituição de 1988 iria se fazer valer, no que compete ao “Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo- -se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.”

Confesso que esperei ardentemente por este oásis, assim como meus irmãos negros esperaram pela abolição da escravatura. E me preparei para isso, pois sou afrodescente, graduada em letras, formada em psicologia com especialização em Saúde Pública; valendo lembrar que sempre estudei em Escolas Públicas e, também, em Universidade Pública, onde ainda não havia o sistema de cotas para negros ou seus descendentes. Confesso que não foi fácil me formar, que sofri todo tipo de preconceito, embutida na forma de “rejeição”, onde estava expresso a ideia de que “este não é seu lugar” volta de onde vieste. Mas, fiquei. Construí uma profissão. Sou funcionária pública estadual concursada. Tenho família. Tenho bens materiais, acesso à cultura, ao lazer, a arte, pois também sou artista, escritora, poetisa, documentarista e todas essas conquistas ofende a dita elite que se perpetua no poder através de seus filhos e netos. Trazendo em suas raízes que o negro não pode ter a mesma inteligência que um branco, e se, por acaso o negro for mais inteligente que o branco esse passa a ser rechaçado, mil vezes mais humilhante que a “rejeição”; pois eles são e permanecerão sendo a elite dita “pensante”, a elite atuante e não admitem jamais perderem este lugar.

Ao negro compete ouvir ordens e obedecê-las, se ajustar aos padrões sociais impostos se quiser fazer parte do grupo. Este não tem direito à opinião, a expressão do seu saber passa a ser uma forma de violência ao branco. E quando não consegue tirar isso do negro, porque isso não pode ser tirado, não pode mais ser negado, não pode mais ser permitido passam a usar de outras formas repudiantes de discriminação que é a difamação, a calúnia, já que estes ainda detem os meios de comunicação, os cargos políticos/públicos. São eles que dizem quem entra, quem fica e quem saí; são eles que tocam à musica para o negro dançar e este não tem escolha se quiser ficar tem que dançar a dança deles.

Mas, eu sou negra, mulher e psicóloga, tenho conhecimento dos meus direitos e deveres como cidadã, não faço parte de uma massa que se deixa levar pelo som da banda e quero expressar as minhas opiniões, como também conquistar e proporcionar para os outros negros, ou excluídos intelectual, cultural e socialmente os mesmos direitos que conquistei. Só que fazer isso é um “crime” inafiançável, é muita petulância para uma mulher negra, sem berço, querer cumprir seu papel social, suas funções enquanto profissional. Querem que o negro não se orgulhe de suas conquistas, porque negro não pode ter “orgulho”; ter “orgulho” é pecado, ter “orgulho” é soberba.

Quem falou que ter orgulho é isso? Quem? Respondo-os: o branco,através da religião a serviço de uma classe dominante. Enquanto ter orgulho das conquistas é, simplesmente, elevar a autoestima, o sentimento de capacidade do Ser humano. Estou aqui expressando de forma resumida, anos de discriminação, preconceito, rechacimento contra a raça negra e a sua representatividade, e aqui eu me incluo. Sem medo de errar digo e reafirmo que muitos santoantonienses se espelharam na representação simbólica da minha pessoa ou das minhas conquistas adquiridas e assim tiveram a coragem de realizar seus sonhos, isso incomoda quem não ousou entrar pela mesma porta que o branco entrou. Jamais me senti derrota pela cor da minha pele; sou uma profissional querida pelos meus pacientes…aí já demonstra minha competência.

É evidente que questionar certos comportamentos da elite os irritam, então eles preferem excluir aqueles que faz uso da fala, que reivindicam seus direitos, sendo esta uma maneira de cala-los, dessa forma mostrarão para os demais que se ousarem ter esse tipo de comportamento, terão o mesmo fim. Isto nada mais é que os Pelourinhos (troncos) atuais onde ocorrem o açoite do negro ou negra, ou seja, açoite com palavras, calunias, difamação para ver se estes aprendem, para ver se estes falam menos, para ver se tiram o seu “orgulho”. Essas eram as palavras apregoadas pelos Senhores de Engenho, pelos Feitores que tinham a missão de vigiar e castigar os negros, que deviam ser tratados à Pano, pão e pau.

Então, podem até se perguntar, mas tem negros no sistema? Fazendo seu trabalhinho, não incomoda ninguém, não diz nada, é uma ótima pessoa. Respondo-vos, mais uma vez: tem, estes acataram acompanhar o toque da banda. Porém, eu, negra, mulher e psicóloga, militante na área dos direitos humanos desde os quinze anos de idade não compactuo com nenhuma forma de preconceito, discriminação; enquanto cidadã ou no exercício da profissão estarei, recorrendo, incansavelmente ao uso da cidadania, a conquista dos direitos dos desassistidos. Ao todo fazem mais de trinta anos que venho nessa luta, e gostaria de dizer apenas que vocês não me venceram, vocês não me silenciaram, porque o que me move não é o mesmo sentimento que movem vocês, isto é, o poder, a raiva e o ódio a nossas conquistas.

O sentimento que me mobiliza é de gratidão a tudo que conquistei e a vontade de proporcionar ao outro; negro, branco, índio o direito ao respeito, amor, dignidade e cidadania; para tanto preciso de coragem, fé, esperança e amor e sei que esses sentimentos fazem parte de mim e nada e nem ninguém jamais os roubarão!

 

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