Porque falamos tão pouco (ou quase nada) sobre o legado da escravidão negra nos estudos em Administração?

“Nesta história não há perpetradores…, apenas vítimas” (Santos, 2008, p. 165)

Em seu artigo “The repressed memory of Brazilian slavery” (“A memória reprimida da escravidão brasileira”), a autora Myrian Sepúlveda dos Santos faz um parelelo entre a Psicanálise e os resquícios da escravidão negra na cultura e na socidade brasileira. A autora comenta que na Psicanálise, estudiosos argumentam que vítimas de experiências traumáticas mantém comportamentos compulsivos ou de auto-destrução, e ainda os transmitem para as gerações seguintes, pelo fato de não terem a completa compreensão da experiência que tiveram. Um exemplo deste cenário é encontrado entre sobreviventes do Holocausto. Pesquisados que analisaram testemunhos de sobreviventes observaram que muitos destes indivíduos ficaram presos aos eventos traumáticos pela impossibilidade de se distanciar do evento e entender o seu significado. Daí, divididos entre contar sua história e a impossibilidade de compreendê-la, muitos permaneceram em silêncio (Santos, 2008). 

A autora faz esta análise das consequências de eventos traumáticos e das consequências do silenciamento destes eventos para conduzir o leitor a entender o quão reprimida é a memória da escravidão no Brasil e o quão nociva é para a nossa sociedade a ausência da compreensão (e cura) deste evento histórico. 

A escravidão é vista como uma fase da História que precisa ser superada e é esquecida à medida que em que é relativizada. 

Tais marcas são percebidas nos preconceitos e discriminações raciais e de classe, no empobrecimento, na distribuição desigual das oportunidades. Estes aspectos são percebidos em todos os âmbitos da sociedade e de suas instituições (Nkomo, 1992; Rosa, 2014). 

Por sua vez, a Administração é uma disciplina que tem como um dos seus objetivos entender a dinâmica das organizações públicas e privadas e da gestão de pessoas no ambiente de trabalho. Apesar destas marcas da escravidão impactarem na dinâmica das organizações e na inter-relação de seus indivíduos, observa-se uma escassez de estudos que analisem o legado deste período histórico no âmbito da Administração.  Este silêncio nos impede de entender a condição dos negros nas empresas brasileiras (Costa & Ferreira, 2006). 

Stella Nkomo, em um artigo publicado no Academy of Management Review intitulado “The emperor has no clothes: Rewriting ‘race in organizations’” (“O imperador está nu: Reescrevendo ‘raça nas organizações’” critica a omissão do aspecto racial nos Estudos Organizacionais. A autora comenta que as relações raciais são um elemento nuclear da individualidade, das relações sociais e das instituições, e por este motivo é um elemento fundamental para entendermos as organizações e o modo como seus membros se inter-relacionam. É interessante observar o olhar crítico da autora sobre esta omissão. Ela questiona “por que nós, como estudiosos da organização, continuamos a conceituar as organizações como neutras em termos de raça? Porque a raça foi silenciada no estudo das organizações?” Nkomo (1992, p. 489).

Como exemplo desta pungente ausência de debate sobre os espinhosos resquícios da escravidão no campo da Administração são os estudos da História da Administração que relatam eventos da história antiga, pré-moderna e contemporânea – quantas vezes já analisamos a evolução da Gestão de Projetos a partir da construção das pirâmides do Egito, não é mesmo?! – mas, omite o período escravista das análises e narrativas sobre a evolução das práticas em Administração. (Cooke, 2003). 

Outro artigo contundente e interessantíssimo sobre abstração do período escravista nos estudos das organizações e da Administração é o artigo de Bill Cooke “The denial of slavery in Management Studies” (“A negação da escravidão nos estudos da Administração”). O autor comenta sobre este lapso nos estudos da História da Administração em termos relativamente fortes. Para Cooke (2003), estudos sobre a evolução histórica das práticas e processos administrativos tendem a ignorar (ou “negar”) as práticas de gerenciamento e supervisão exercidas durante período escravista. Cooke (2003) argumenta que há evidências de que as plantações do Sul dos EUA já utilizavam práticas complexas de gestão. Um exemplo nesse sentido é a atuação dos capatazes nas plantations estadunidenses. Os capatazes foram os primeiros gerentes assalariados, atuando em um papel muito semelhante àquele exercido pelos supervisores das fábricas estruturadas sob o paradigma taylorista-fordista. Tais evidências legitimariam a inclusão do período escravista na análise da evolução da Administração.  (Cooke, 2003). 

Felizmente, pesquisadores têm percebido a importância de se compreender as organizações e o business em um contexto social mais amplo. Godfrey et al. (2016) no editorial da edição especial do Academy Management Review sobre Management History apontam que é importante analisar a participação das empresas e corporações em eventos históricos como escravidão e Holocausto.  Ao omitir o “lado obscuro” das organizações perdemos a oportunidade de problematizar as narrativas e memórias sobre a cumplicidade das organizações com escravidão, guerras e racismo (Godfrey, Hassard, O’Connor, Rowlinson, & Ruef, 2016); e consequentemente, perdemos a oportunidade de responsabilizar os autores e reparar as vítimas (Santos, 2008).

Podemos atribuir a negação deste período histórico ao modo como lidamos com eventos trágicos. Há uma tendência a analisar eventos trágicos como um período a ser superado, e até mesmo esquecido. Além disso, há um fator crucial. Muitas vezes, o processo de seleção, reconstrução e relato de memória da escravidão é feita, por indivíduos que não se identificam com os eventos e consequências do sistema colonial-escravista. Como efeito, temos a relativização e subestimação desta memória histórica (Santos, 2008). 

O que temos visto na mídia e nas redes sociais sobre racismo estrutural e todas suas vertentes pode ser analisado como uma sequela desta “memória reprimida” a que se refere a autora Myrian Sepúlveda.  A relativização do período escravista não produz perdão ou cura das feridas históricas. Ao contrário, com o esquecimento o processo de cura permanece inacabado, mesmo para as gerações presentes. “Os herdeiros deste passado são obrigados a carregar um tremendo fardo: são vítimas de ninguém, então não podem perdoar ninguém” (Santos, 2008, p. 165). 

O período escravista está longe de ter sido curado. Por isso, é mais que justificável que tenhamos oportunidades de debater sobre o legado deste período no âmbito das organizações públicas e privadas e das relações de trabalho. Debater a “memória reprimida” da escravidão negra nos estudos da Administração pode não trazer a cura total dos efeitos traumáticos deste evento histórico, mas certamente há de colaborar para contextualizar a gestão da diversidade nas organizações brasileiras (Rosa, 2014) como também para minimizar questões delicadas como racismo, desigualdade e práticas ainda existentes de escravidão e trabalho forçado.  

PS: Recomendo a leitura dos artigos citados nas referências. A leitura destes trabalhos é de grande utilidade para pesquisadores, gestores, líderes e todos interessados sobre o debate da diversidade e das questões raciais no âmbito corporativo, organizacional e social.

Referências

Cooke, B. (2003). The denial of slavery in management studies. Journal of Management Studies, 40(8), 1895–1918.

Costa, S. G. da, & Ferreira, C. da S. (2006). Diversidade e minorias nos estudos organizacionais brasileiros: Presença e lacunas na última década. In IV Encontro Nacioanal de Estudos Organizacionais – EnEO. Porto Alegre: ANPAD.

Godfrey, P. C., Hassard, J., O’Connor, E. S., Rowlinson, M., & Ruef, M. (2016). What is organizational history? Toward a creative synthesis of history and organization studies. Academy of Management Review, 41(4), 590–608.

Rosa, A. R. (2014). Relações raciais e estudos organizacionais no Brasil. Revista de Administração Contemporânea, 18(3), 240–260.

Santos, M. S. dos. (2008). The repressed memory of Brazilian slavery. International Journal of Cultural Studies, 11(2), 157–175.3

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

 

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