Desafetos ou racismo institucional na ciência psicológica?

O artigo Paradoxo na ciência: negros e mulheres inovam, mas são raros na academia , relata boas observações do cenário brasileiro. No entanto, na Bahia, nas universidades, o cenário aparentemente é diferente em função da prevalência de mais de 70% de população negra (pretos e pardos, IBGE, 2010), os alunos podem conviver com professores pesquisadores negros – acredito que é fundamental organizar uma pesquisa sobre quantas cientistas negras e negros atuam na Bahia. Quais cargos são ocupados por mulheres e homens pesquisadores negros nas universidades, quantos são participantes nos Núcleos Docentes Estruturantes. Órgãos que determinam e pensam os currículos nas universidades e o quê, mulheres negras e cientistas, estão fazendo.

O texto aborda a reflexão sobre a ausência da diversidade na ciência e em especial nos provocou a pensar a ciência psicológica da saúde mental da população brasileira e os comportamentos humanos e institucionais na academia científica.   

Pensemos sobre alguns fatos: Porque um professor pesquisador, homem, branco, jovem e com apenas um ano e dois meses de casa, é eleito por TODOS os pesquisadores (professores e professoras brancos e uma negra – ao menos fenotipicamente), presentes em uma reunião de área para assumir a vaga de titularidade em um concurso para um campo no qual uma das referências nacionais é uma mulher negra, pesquisadora na universidade com 10 anos de atividades, também candidata a vaga e recentemente em retorno de pesquisa pós doutoral no campo da vaga da banca do concurso em ambiente internacional e europeu, com financiamento público de ampla concorrência entre todas as áreas da ciência, apenas uma bolsa para a psicologia que foi, após concurso, destinada à uma pesquisadora negra ?

Em que pese desafetos pessoais sempre presentes em qualquer ambiente institucional, parece que mais que desafetos, outras incursões são prevalentes nos modos de considerar o trabalho, contribuições, protagonismos e inovações científicas, na saúde mental, de mulheres negras nas Universidades brasileiras. Seria um racismo? Não sei. O fato é que mesmo após a pesquisadora negra, aceita formalmente internacionalmente em ambiente branco e europeu, para seu pós doutorado em saúde mental, após a única a votar em si mesma e questionar na mesma reunião sobre os critérios que levaram ao conjunto branco totalitário presente na reunião de área a elegerem um professor homem, branco, jovem e sem experiência docente consistente no campo da docência e pesquisa na carreira universitária e fora dela  em função inclusive de sua juventude e recente ingresso no mercado profissional, nenhum dos presentes se prestaram a responder o questionamento. Evadiram da resposta necessária com um simples: esta questão, o critério de nosso voto, não está na pauta. E uma pesquisadora branca – ao menos fenotipicamente – se retirou da sala, negando-se a participar da “conversa”.

Não obstante, o desconforto e violência simbólica ocorrida com a pesquisadora negra pertencente ao quadro docente há dez anos, foi apagada sua voz quando solicitou por e-mail que o registro do ocorrido constasse no relatório da reunião da área: novamente disseram agora por escrito – conforme as normativas legais, o relatório de área NÃO PODE SER EXTENSO, portanto não cabe a inclusão do registro solicitado. 

O fato é importante pois a função de participar de banca de concurso é remunerada. Mulheres negras historicamente recebem financeiramente menos que homens brancos, mulheres brancas e homens negros. São as últimas da pirâmide financeira da desigualdade (PNAD, IBGE, 2018).  Além disso, quem senta em uma banca de concurso público em muito contribuirá para o processo decisório dos modos de se pensar e fazer ciência na academia a partir da avaliação da competência de novos membros para este estreito funil tecnológico que é a universidade – a “casa” da ciência. Uma mulher negra, com anos de experiência formal possui menos a oferecer em uma banca de concurso público que um jovem homem branco recém iniciado no processo de pertencimento “a casa” da ciência psicológica? Talvez…

Ou seriam apenas desafetos? Picuinhas irrelevantes? Tendemos a pensar que sim, em anos de situações e comportamentos parecidos que se repetem de diferentes modos e com diferentes atores sociais negros. Como diz a reportagem; mulheres negras inovam mas são raras na academia. E quando presentes, passam por crivos decisórios de colegas – iguais a elas (?) que obliteram seus destinos civis de plenos direitos. São relegadas e destratadas, sem maiores explicações… (Sigamos a pauta! Isto não está na pauta!!!  São os modos como justificam em geral na academia, a recusa ao diálogo sobre os critérios do voto “soberano” que hegemonicamente decidem).

Enfim, assim foi também com o médico baiano Juliano Moreira, em face as violências do maranhense Raimundo Nina Rodrigues em 1900 na Faculdade de Medicina da Bahia – Juliano, negro, uma grande expressão internacional na área. Em nada reconhecidas suas ideias por Nina Rodrigues, branco – ambos fazendo ciência no Brasil a partir do pioneirismo negro da Bahia. No futuro, venceu Juliano. Reconhecido internacionalmente, no Brasil tardiamente, com a certeza da igualdade intelectual entre negros e brancos que ele Juliano defendia desde o final do século XIX (ODA & DALGALARRONDO, 2000). Igualmente acontece com Neusa Santos Souza (médica psiquiatra e psicanalista baiana, nascida no Recôncavo e radicada no Rio de Janeiro), referência nacional em saúde mental e racismo (OLIVEIRA, 2019). Nem Juliano Moreira, nem Neusa Santos Souza, apesar de reconhecidos mundialmente no campo da saúde mental, não são sequer literaturas expressas nos currículos de graduação da psicologia em componentes obrigatórios. Nem mesmo nas universidades consideradas estatisticamente negras no Brasil (OLIVEIRA, 2017). Igualmente Frantz Fanon, médico francês da diáspora negra, ele também não está nos cursos de medicina e psicologia da França, embora seja traduzido em várias línguas e largamente difundido nos cursos que formam pesquisadores da saúde e das ciências humanas nos Estados Unidos e Inglaterra (MACEY, 2015). O apagamento de cientistas negros, na psicologia e na saúde mental, no Brasil, e no mundo, é notório. A ponto de considerarem que as pesquisas no campo das relações raciais e racismo na psicologia, em nosso país, são muito recentes. Nada mais falacioso. Juliano, tem escritos desde o fim do século 19, Neusa atravessa o século XX e chega ao século XXI ainda invisível para os “cientistas” da psicologia. Isto sem contar as cientistas negras paulista e mineira Virgínia Bicudo e Lélia Gonzalez que inovaram para a saúde mental, processos subjetivos e psicologia negra e indígena, no início e no fim do século XX (OLIVEIRA, 2019). 

Um racismo ou um desafeto presente nos modos de viver e gerir o academicismo científico da psicologia brasileira? Podemos chamar de racismo a ausência de diversidade nas vozes hegemônicas que silenciam cientistas negras que falam e são inclusive em outros territórios premiadas? Seja qual for a resposta, é certo que ocorre um verdadeiro apagamento violento das mulheres e de homens negros na ciência! E na psicologia realizada por psicólogos nas universidades brasileiras? O que isto seria? Racismo? Um trivial desafeto? Picuinhas entre pequenos seres de grandes vaidades? Quais os significados desses comportamentos doentios, psicopatológicos, exercidos por cientistas brancas e brancos mas também, não raras vezes, compactuados por cientistas negras e negros nos espaços acadêmicos? Diagnóstico difícil? As respostas às perguntas por quanto tempo estarão silenciadas? Quando Ifá, o oráculo supremo de iorubas e nagôs, nos permitirá desvendar e compreender profundamente estes elos e mistérios? 

Regina Marques, é psicanalista, mestre e doutora em psicologia social. Pós – doutora pelo Instituto dos Mundos Africanos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris/França, professora e supervisora clínica na graduação em psicologia, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicanálise, Identidade, Negritude e Sociedade da UFRB, docente do Mestrado em Relações Étnicas e Contemporaneidade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.

 

Referências

MACEY, D. Frantz Fanon, une vie. La Découverte, Paris, 2015.

ODA, A.M.G.R; DALGALARRONDO, P. Juliano Moreira: um psiquiatra negro frente ao racismo cientifico. Revista Brasileira de Psiquiatria, 22(4), 178-9, 2000.

OLIVEIRA, R.M.S. A formação do psicólogo nos contextos da diáspora africana. In: Oliveira, R.J. & Oliveira, R.M.S (Org.) Dilemas da raça: empoderamento e resistência. Alameda, São Paulo, 2017. 

_______________. O canto das sereias: poéticas femininas negras na psicanálise brasileira. In: Pacheco, C.L. (Org.). Candaces: gênero, raça, cultura e sociedade, construindo redes na diáspora africana. Eduneb: Salvador, 2019.

 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

 

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