Precisamos falar sobre as personagens negras em “Salve-se quem puder”

Vira e mexe eu costumo escrever ou comentar sobre produções midiáticas, especialmente aquelas que têm o poder de alcançar milhares de pessoas. É o caso de novelas globais, por exemplo. E é justamente sobre uma delas que falarei aqui hoje.

Nos próximos dias vai ao ar o último capítulo da atual trama das 19h: “Salve-se quem puder”, folhetim que conta com três atrizes como protagonistas. O enredo é de certa medida leve, com toques de humor, o padrão para o horário.

No entanto, há um outro padrão que também se repete, quando, na verdade, já não deveria mais ocorrer. Em um momento em que clamamos por representatividade, e por representatividade com significado e relevância, infelizmente não é isso que percebemos na novela em questão.

Como citei anteriormente, a trama é protagonizada por três mulheres, três personagens vividas exclusivamente por atrizes brancas. São elas: Alexia/Josimara (Deborah Secco), Luna/Fiona (Juliana Paiva) e Kyra/Cleyde (Vitória Strada). Os nomes das personagens aparecem duplicados porque a trama envolve troca de identidades.

Precisamos questionar por que, ainda hoje, tais tramas insistem em dar destaque quase unicamente a atrizes brancas. Uma novela protagonizada por três mulheres deveria buscar representar a pluralidade do nosso país. Fazendo um paralelo, podemos lembrar a última trama inédita exibida pela emissora na faixa das 21h: “Amor de Mãe”, também protagonizada por três mulheres, mas que incluía uma mulher negra entre elas, a atriz Taís Araujo.

Vocês podem se perguntar se não há atrizes negras no atual folhetim das 19h. Há, há sim, e as personagens envolvem outra problemática. Para cada protagonista branca, há uma antagonista negra. Não necessariamente vilãs odiosas, mas personagens que se contrapõem às mocinhas em questão. Inclusive, vale ressaltar aqui, também, o caráter afetivo, já que cada uma das personagens antagonistas negras são preteridas pelas protagonistas brancas.

A personagem Alexia/Josimara, vivida por Deborah Secco, faz par romântico com o personagem Zezinho, interpretado pelo ator João Baldasserini. Quem também é interessada no rapaz na trama é a personagem Bel, vivida pela atriz Dandara Mariana. No folhetim, por diversas vezes, Bel se insinua para José, em um enredo que supersexualiza a personagem negra, sempre posta de lado pelo mocinho do núcleo, que apenas tem olhos para Alexia, a personagem branca.

A segunda protagonista é a atriz Juliana Paiva, que vive Luna/Fiona. Ela é apaixonada por Téo (Felipe Simas), que namorava a personagem Úrsula, vivida por Aline Dias. Com a chegada de Luna, Téo por ela se apaixona e termina o namoro. Úrsula, então, a vilã negra, promove uma espécie de perseguição à mocinha branca. Além disso, mostra-se dependente de medicamentos. Mais uma vez, um enredo em que a mulher negra é preterida e cujas emoções e atitudes não positivas são destaque na trama.

A última personagem do trio principal é Kyra/Cleyde, interpretada por Vitória Strada. Ela era noiva de Rafael, vivido por Bruno Ferrari, ex-namorado na trama da personagem Renatinha, interpretada pela atriz Juliana Alves. Durante os capítulos, Renatinha tenta a todo custo, inclusive por ações incorretas comuns às novelas, reconquistar o ex-companheiro e é, reiteradamente, rejeitada. 

E não é apenas no núcleo principal que vemos a inferiorização, seja de caráter, afeto, ou destaque, das personagens negras que integram o elenco. Em um nicho menor, onde jovens praticam ginástica artística, vemos um exemplo clássico do famoso estilo “a amiga negra da protagonista branca”. Nesse núcleo específico, a personagem central é a ginasta Bia, vivida por Valentina Bulc. Ela tem uma fiel escudeira, Dionice, interpretada por Bárbara Sut, cuja principal função, infelizmente, é ser amiga da ginasta branca.

Para finalizar o combo de histórias, e olhe que nem cito aqui todas as identificadas, temos a insistência em dar apelidos a meninos negros. O ator Ygor Marçal dá vida ao personagem Mosquito. Eu mesma já perdi as contas de quantas vezes crianças negras não tiveram nomes próprios em cena. São quase sempre Mosquito, Mosca, Pata, Buscapé…

Enfim, é desanimador ver que ainda precisamos apontar a importância da representatividade e, mais do que isso, da representatividade com propósito e significado. Por que uma novela insiste em dar papéis menos “louváveis”, com personagens que permeiam a vilania e estão sempre em segundo plano, para serem interpretados por profissionais negros? Talvez os autores não expliquem. Mas nós estamos aqui para questionar.

Minibio

Jaqueline Fraga é escritora, jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco e administradora pela Universidade de Pernambuco. Apaixonada pela escrita e pelo poder de transformação que o jornalismo carrega consigo, é autora do livro-reportagem “Negra Sou: a ascensão da mulher negra no mercado de trabalho”, finalista do Prêmio Jabuti 2020. Pode ser encontrada nas redes sociais nos perfis @jaquefraga_ e @livronegrasou no Instagram.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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