Precisamos falar sobre branquitude e seu papel na luta antirracista

“Por que você gostaria de me entrevistar?”, perguntou o historiador Lourenço Cardoso, professor do Instituto de Humanidades da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), no Ceará, quando fiz o pedido de entrevista para escrever este texto. “Há tendência de reportagens sobre branquitude invisibilizarem pesquisadores negros. Escutam pesquisadores brancos e negros, e dão protagonismo ao pesquisador branco; o negro está lá somente para dizer que o repórter também entrevistou o negro. Portanto, sou reticente.”

Do alto da minha branquitude, fiquei irritada. Um dos principais pesquisadores do país sobre o tema, Cardoso é autor da tese de doutorado O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil, publicada em 2014 pela Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) em Araraquara, no interior paulista. Sua reação ao pedido de entrevista deu um nó na minha cabeça: “ué, mas nós não precisamos dar voz a pesquisadores negros? Como vamos fazer isso se somos recebidos assim?”

O que eu não havia percebido é que reagi exatamente como descreveu a autora britânica Reni Eddo-Lodge em seu livro Por que Eu Não Converso mais com Pessoas Brancas sobre Raça (Editora Letramento): indignada ao ter finalmente sido convidada a ouvir. “Em meio a toda a conversa sobre ‘pessoas brancas que são gentis’ se sentindo silenciadas por conversas sobre raça, existe uma espécie de ironia e evidente falta de compreensão ou empatia por nós que fomos visivelmente marcados como diferentes durante toda nossa vida e que vivemos com as consequências disso”, escreve Eddo-Lodge. “Deve ser uma vida estranha, sempre tendo permissão para falar e se sentindo indignado quando você finalmente é convidado a ouvir. Decorre do direito dos brancos de nunca serem questionados, suponho.”

Desde maio, os protestos nos Estados Unidos após a morte de George Floyd, um homem negro morto em Minneapolis asfixiado por um policial branco que se ajoelhou em seu pescoço por oito minutos, acenderam os debates sobre racismo. Nas redes sociais, a frase célebre de Angela Davis voltou a circular: “Em uma sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”, com listas e mais listas de recomendações de como ser e agir de forma a (tentar) combater o preconceito racial.

O problema é que pouco se fala sobre o que significa ser branco — “branquitude” nada mais é do que se reconhecer enquanto pessoa branca e os privilégios atrelados a isso — e como isso se relaciona com a discriminação racial. Diversos pesquisadores, entre eles a psicóloga portuguesa Grada Kilomba e a filósofa brasileira Djamila Ribeiro, ressaltam que o racismo é, sobretudo, uma problemática branca. “O racismo foi inventado pela branquitude, que como criadora deve se responsabilizar por ele”, explica Ribeiro em seu livro Pequeno Manual Antirracista (Companhia das Letras). Na visão dela, pessoas brancas não têm o hábito de pensar sobre o que significa pertencer a esse grupo, pois o debate racial é sempre voltado para a negritude.

“O branco pensa o outro porque é o desvio do padrão, é quem compete ser criticado, investigado, porque o problema é não ser branco”, analisa Cardoso, que no fim concordou em responder às minhas perguntas. “Mas é importante olhar para si e verificar que a humanidade não é sinônimo de homem branco. Também para questionar o padrão que impôs ao mundo. O branco é a própria medida de si e dos outros, de modo que todos os não brancos somente podem ser uma imitação do branco. Sempre será um ‘não ser’. O ‘ser’ fica restrito ao homem branco e, no máximo, à mulher branca”, observa o historiador.

Falsa democracia racial

Segundo a pesquisadora Ana Helena Ithamar Passos, cofundadora do Instituto Ella Criações Educativas, que fornece consultoria e formação profissional na área de direitos humanos, essa ausência de “racialização” colabora para que os brancos definam as regras do jogo e mantenham uma estrutura de privilégios. É o racismo em sua forma mais pura. Segundo a psicóloga Lia Vainer Schucman, professora da Universidade Federal de Santa Catarina e especialista em estudos sobre branquitude, o racismo é uma questão de poder, não moral.

“Dizemos a nós mesmos que pessoas boas não podem ser racistas. Dizemos a nós mesmos que o racismo é sobre valores morais, quando, em vez disso, é sobre a estratégia de sobrevivência do poder sistêmico”, escreve Eddo-Lodge. “Pensar no poder me fez perceber que o racismo era muito mais do que preconceito pessoal. Era sobre estar na posição de afetar negativamente as chances de vida de outras pessoas. O racismo estrutural são dezenas, centenas ou milhares de pessoas com os mesmos vieses que se juntam para formar uma organização e agir de acordo.”

Por estar tão bem costurado no tecido social, enxergá-lo exige certo esforço de quem goza dos privilégios da organização. No Brasil, esse reconhecimento foi dificultado ao longo da história sobretudo pela construção do chamado mito da democracia racial, que até hoje naturaliza a miscigenação forçada do período colonial e cria uma falsa ideia de harmonia. Diferentemente dos Estados Unidos, por exemplo, cujo princípio de “separados, mas iguais” das Leis de Jim Crow mantiveram escancarada a estrutura do sistema racista da escravidão, no Brasil não houve uma institucionalização do racismo após a abolição — o que não significa que ele sumiu do dia para a noite.

Em vez de investir e criar dispositivos legais para incluir os que eram escravizados na sociedade, ocorreu justamente o contrário, ainda que de forma sutil. Por exemplo, a Lei de Terras de 1850, ano em que o tráfico de escravos passou a ser proibido no Brasil, extinguiu a apropriação de terras por ocupação e deu ao Estado o poder de vendê-las. Isso dificultou a situação de negros libertos ou, 38 anos depois com a abolição da escravidão, ex-escravizados: mesmo teoricamente tendo o direito de comprar terras, eles não tinham dinheiro para fazê-lo, visto que nunca foram pagos por seus trabalhos. Aumentando ainda a marginalização dos negros, suas antigas funções passaram a ser feitas por imigrantes europeus, que receberam concessões de terra para criarem colônias no país e, assim, conseguiram não só qualidade de vida, mas inclusão.

Sem a institucionalização do racismo, repetem diferentes especialistas, os brasileiros foram acostumados a ter preconceito de ter preconceito: seríamos um povo só, convivendo em uma sociedade sem nenhuma hierarquia racial. Mas essa exclusão velada contribuiu para a manutenção da mentalidade “casa-grande e senzala” no país. “A prática do racismo no Brasil é muito eficiente, por isso essas leis de segregação não foram necessárias”, pontua Cardoso.

Uma pesquisa do Datafolha já bastante antiga, de 1995, tornou-se icônica por escancarar essa contradição: 87% dos brasileiros não negros entrevistados manifestaram algum tipo de preconceito contra negros ao responder ao questionário; mas apenas 10% enxergaram o racismo em suas próprias atitudes. Os brasileiros vivem no que seria “uma ilha de democracia racial, cercados de racismo”, descreve a antropóloga Lilia Schwarcz no livro Negras imagens : ensaios sobre cultura e escravidão no Brasil.

O racismo estrutural

Como o próprio termo indica, ele trata da estrutura que contribui para reduzir pessoas negras e sua cultura a determinados estereótipos. Em seu livro, Djamila Ribeiro dá o exemplo de seu irmão trompetista, que toda vez que dizia ser músico ouvia o questionamento se tocava algum instrumento relacionado ao samba. No jornalismo, de fato tendemos a entrevistar pessoas negras somente quando o assunto é racismo, como bem apontou o pesquisador Cardoso. Isso é um problema porque reforça a ideia de que não há especialistas negros em outras áreas do conhecimento.

O racismo estrutural ainda pode ser disfarçado por trás de boas intenções: minha mãe, por exemplo, volta e meia repete que negros são naturalmente mais aptos para a dança e para o esporte, que é uma “superioridade da raça”.

Justamente por ser uma estrutura, esse é um tema com muitas camadas. Uma delas é a desproporção na representatividade: deveria causar espanto que no Brasil, onde mais da metade da população se reconhece como negra, existam poucos negros em posições de poder — de cargos de gerência a protagonistas na TV. Em contrapartida, são eles as principais vítimas da violência. Segundo o Atlas da Violência de 2019, 75,5% dos mortos por assassinato são negros: em 2017, o Brasil somou 49.524 homicídios de pessoas negras, uma alta da 9,1% em relação ao ano anterior. Para cada indivíduo não negro assassinado, quase três negros foram perderam a vida.

Por aqui, também temos centenas de casos como o de George Floyd, de pessoas negras que morrem nas mãos da polícia. Mas só os episódios mais brutais ganham repercussão, como o do menino João Pedro, de 14 anos, assassinado em maio no Rio de Janeiro após ter tido sua casa alvejada por mais de 70 tiros de fuzil disparados por policiais. Em 2018, a polícia brasileira matou 6220 pessoas, das quais 75% eram negras, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Nos Estados Unidos, 1098 pessoas foram mortas pela polícia, das quais 24% eram pretas, no ano passado.

Jogar os conflitos “para debaixo do tapete”, como diz Cardoso, ou seguir negando a existência de uma estrutura racista nos afasta de enxergar uma solução para nos tornarmos uma sociedade mais justa. “Não tenha medo das palavras ‘branco’, ‘negro’, ‘racismo’, ‘racista’”, escreve Ribeiro. “Dizer que determinada atitude foi racista é apenas uma forma de caracterizá-la e definir seu sentido e suas implicações. A palavra não pode ser um tabu, pois o racismo está em nós e nas pessoas que amamos — mais grave é não reconhecer e não combater a opressão.”

Sou racista, e agora?

Reconhecer-se racista, ou seja, beneficiado por uma estrutura que prioriza a cor de pele branca, é talvez o passo mais importante para iniciar a luta contra o racismo. O trabalho não é fácil — se fosse, seria muito simples eliminar o racismo da face da Terra. A sutileza do privilégio é ele ser algo do qual nos beneficiamos às vezes sem nem perceber. Não adianta sair por aí gritando “não quero ser privilegiado por ser branco”: as portas dos diversos setores da sociedades vão continuar sendo abertas para você e fechadas para uma pessoa negra. Mas enxergar a presença dele é o primeiro passo para desaprendê-lo.

Essa desconstrução, na visão de Passos, passa por duas dimensões: uma externa e outra mais subjetiva. “A gente tem que conversar de branco para branco, pensar no que podemos fazer para que tenhamos um maior número de brancos repensando o assunto”, propõe. “Ao mesmo tempo, precisamos construir um acervo de representatividade positiva negra, pois é preciso desconstruir o racismo e colocar algo positivo no lugar. Temos de nos posicionar como antirracistas, mas saindo de um lugar de superioridade, que é uma constituição da nossa identidade como população branca. E para sair desse lugar, a gente tem que conhecer histórias negras.”

É um processo de “letramento racial” — assumir a raça e recompor o universo racial com a construção de um novo conjunto de códigos sociais e culturais, que começa na infância e segue até a vida adulta. O antirracismo não é um estado mental de se declarar não racista ou antirracista, e sim o engajamento em ações constantes e contínuas para usar o nosso lugar ou privilégio de brancos para mudar o estado da sociedade. “Sem a responsabilização dos brancos, não vamos eliminar o racismo, porque o branco é responsável pela longa duração e pelas ações concretas do racismo, e porque é a população branca que hoje está nos maiores lugares de poder”, aponta a cofundadora do Instituto Ella Criações Educativas.

Por mais tentador que seja, especialmente em tempos de protestos e ativismo em redes sociais, não é algo que possa ser reduzido a checklists que, uma vez finalizados, concedem ao branco o título de antirracista. É um processo constante e de longo prazo — e que só você pode conduzir. “Ao perguntar ao negro e à negra, o branco deixa de lado a sua responsabilidade por erros e acertos nesse caminho. Errar é humano e pedagógico. A branquitude possui responsabilidade, exerçam a sua responsabilidade para a construção de uma sociedade que busca justiça”, pede Cardoso.

Para mim, esse exercício começou em me reconhecer como racista (é difícil se livrar do peso moral no início) para me atentar ao sistema que me privilegia diariamente e, pouco a pouco, mudar a forma como reajo a ele.

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