Pretos e pobres longe das escolas: um projeto político de retenção social

As leis de cotas, a ampliação das universidades públicas e dos institutos federais são medidas educacionais resultado de lutas que datam de muito tempo e visam um projeto de nação que oportuniza e qualifica a maioria de seus integrantes. As razões históricas para a elaboração e determinação dessas oportunidades precisam ser pesquisadas, explicadas e comprovadas, pois tais medidas são questionadas e ameaçadas em sua continuidade. Houve mobilizações vitoriosas para reverter um projeto quase velado de exclusão de determinado perfil de pessoas da educação escolar, ao longo de um processo histórico que se iniciou no século XIX, com o declínio da escravidão e da Monarquia no Brasil.

É possível verificar alguns exemplos da preocupação com o ensino no contexto referido, como uma exposição de D. Pedro II, em 1870, acerca da educação escolar para o trabalho livre, em decorrência das mobilizações abolicionistas, na conhecida publicação da época: Falas do trono. Ele apontava que era necessário “elevar o nível intelectual difundindo-se a instrução por todas as classes da sociedade, animar o trabalho facilitando as comunicações e quebrar as tradições da rotina auxiliando de braços livres a lavoura”. Nessa década, houve o Censo de 1872, que indicou um percentual de 82,3% de pessoas analfabetas no Brasil. Um marco na educação nacional foi estabelecido, mas de maneira negativa. Havia a evidência de que o país tinha quase a totalidade de sua população analfabeta. O que isso significaria para esse contexto? Quais medidas foram tomadas para resolver tal problema? 

A concepção de “um país de analfabeto”, como afirmou o advogado e jurista Ruy Barbosa, teve diversas reverberações em vários âmbitos a partir desse Censo até a entrada do século XX, quando os índices de alfabetização aumentaram. Tal visão aparecia, inclusive, em críticas políticas, como uma forma de depreciar oponentes, como vemos na tira publicada no jornal O Malho de 1912, com o título “Mágoas acesas”:

O Malho, Rio de Janeiro, 1912. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

O analfabetismo também foi discutido em obras literárias, como em Os Analfhabetos, do autor baiano João Gumes. E de forma menos direta em obras de Lima Barreto, Machado de Assis, José do Patrocínio e Xavier Marques. O tema também foi pautado em debates sobre formas de escolarização e ações foram tomadas com o objetivo de sanar o problema do analfabetismo. Diferentes frentes educacionais operavam, como escolas noturnas para trabalhadores, que recebiam pessoas escravizadas, ingênuas, libertas, mulheres e crianças. Além de escolas chamadas de “colônias agrícolas” ou “casas correcionais” para pessoas consideradas vadias. Todas as “frentes” tinham a proposta de ensinar as primeiras letras, que era o nível educacional que possibilitava a alfabetização. 

Os índices de letramento da população eram um assunto que reverberava nas instituições públicas nacionais. A escolarização para pessoas vadias, por exemplo, desde o final da década de 1870, já passava por intenso debate na Bahia. Em 1877, o chefe da polícia da província, João Bernardo de Magalhães, apontou em relatório que “[…] a ausência da instrução popular deixa as camadas inferiores de nossos concidadãos sem a cultura de espírito necessária para poderem conhecer os seus direitos e deveres, nascendo da ignorância em que vivem os hábitos viciosos que adquirem”. Essa era uma concepção das instâncias de segurança pública na Bahia sobre o que se entendia como efeito da falta ou da debilitada “instrução popular”.

Magalhães refletiu sobre educação e criminalidade e estabeleceu entre as duas uma relação direta de causa e consequência, evidenciando certa urgência em escolarizar as populações pobres, com investimento ainda maior em educação escolar. Essa seria uma ação preventiva e reparadora da marginalidade, e garantiria, para essas pessoas, o exercício da cidadania, através do conhecimento e proveito de seus direitos e deveres. Porém, isso não significou que, na prática, a aprendizagem da leitura e da escrita ocorria de fato. Uma vez que o Censo geral seguinte, de 1890, apresentou um índice de 83,6% de pessoas analfabetas no país, maior que o número de 1872. Ou seja, mesmo com as medidas educacionais anunciadas por políticos, diretores da Instrução Pública nas províncias (setor equivalente às Secretarias Estaduais de Educação), professores(as), chefes de polícia e populares para combater essa situação, o resultado não foi satisfatório.

Em 1880, na década de maior acirramento das movimentações abolicionistas, o presidente provincial Antônio de Araújo de Aragão Bulcão, em relatório à Assembleia Legislativa da Bahia, indicou que “para levar a efeito seu desejo conseguiu que Dr. Domingos Carlos da Silva estabelecesse a colônia em suas próprias fazendas”. Diante dessa concessão, o presidente discorreu que: “[…] sendo muito crescido o número de menores que vagam pelas ruas desta cidade em completo abandono, e quase todos expostos ao vício. O estabelecimento é destinado não só à agricultura como à indústria”.

Esses projetos se apresentavam como espaços de contenção de pobres para garantirem rentabilidade pública e particular sob o argumento da preocupação em fazê-los “produzir para a nação”. Até esse período, a lida com a vadiagem se apresentava predominantemente policialesca. Walter Fraga Filho marca uma análise em Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. Para ele, na Bahia, “a intenção era retificar a juventude das ruas, circunscrevê-la no âmbito das oficinas, do orfanato e do serviço militar”, focando mais na condição em que viviam e como eram tratadas pelas instâncias públicas. Ao que parece, a ampliação da escolarização desses sujeitos nas colônias, ao terem também o ensino da leitura, da escrita e de cálculos básicos, estava atrelada à abolição da escravidão e a questão da segurança pública. Pois entendia-se que era necessário garantir o controle das pessoas egressas do cativeiro.

O que se chamava de proposta para “colônia agrícola” passou a ser chamada de “colônia” ou “casa correcional”, declarando de maneira mais evidente o propósito de combater um tipo específico de criminalidade com essas instituições. A figura do chefe de polícia, enquanto liderança de poder de controle e coerção, prevalecia sob a do diretor do setor de Instrução Pública para determinar os encaminhamentos dos “recolhidos” em uma instituição. 

Com a implantação do modelo de governo republicano, o Código Penal de 1890 previa que vadio era quem deixasse de exercer profissão, ofício que ganhasse a vida, “não possuindo meios de subsistência e domicílio certo”, assim como vivesse “por meio de ocupação proibida por lei, ou manifestamente ofensiva da moral” e que se sustentasse de jogos que dependessem da sorte. Os maiores de 14 anos seriam “recolhidos em estabelecimentos disciplinares industriais”, onde poderiam permanecer até a idade de 21 anos, a maioridade da época. 

No artigo 399 do mesmo código ficou previsto que: se nas ruas e em praças públicas houvesse “exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação de capoeiragem”, seus praticantes andassem em “correrias com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal”, seriam penalizados. Se na acusação de vadiagem não se apresentava nitidamente a existência de estigma racial para com todos os seus acusados, a condenação da capoeira não deixa dúvida neste código de que pessoas negras eram alvos de perseguição e associadas ao delito.

Assim, a condição social, racial e de classe foram pautadas como parâmetros para proporcionar escolarização primária, principalmente associada à aprendizagem profissional decorrente também do declínio da escravidão, com fortes tons de controle desses sujeitos pela via coercitiva. Alegava-se que sujeitos nesse perfil significavam ameaça à ordem pública, mas o Estado não os proporcionava sequer a superação do analfabetismo. Apenas garantia a aprendizagem de atividade para o trabalho, que funcionava mais como um aprimoramento de práticas profissionais das quais já tinham alguma noção. Tais “esforços” não buscavam ampliar horizontes para essas pessoas, no sentido de terem uma formação escolar em outros níveis ou para exercerem os trabalhos que quisessem e fossem vocacionados.

Eram planos de formação de um contingente de trabalhadores subalternos sem consideráveis e amplas oportunidades de formação para si e para sua descendência, reverberando numa histórica baixa de matrículas de pessoas com esse perfil nos bancos escolares e universitários. História transformada a partir das contínuas mobilizações desse público para alcançar esses espaços a partir de leis que evidenciam tal processo de exclusão mascarado como inclusão.

Assista ao vídeo do historiador Jucimar Cerqueira dos Santos no Acervo Cultne sobre este artigo: 

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF08HI20 (8º ano: Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas); EF08HI22 (8º ano: Discutir o papel das culturas letradas, não letradas e das artes na produção das identidades no Brasil do século XIX); EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados).

Ensino Médio: EM13CHS201 (Analisar e caracterizar as dinâmicas das populações, das mercadorias e do capital nos diversos continentes, com destaque para a mobilidade e a fixação de pessoas, grupos humanos e povos, em função de eventos naturais, políticos, econômicos, sociais e culturais); EM13CHS202 (Analisar e avaliar os impactos das tecnologias na estruturação e nas dinâmicas das sociedades contemporâneas (fluxos populacionais, financeiros, de mercadorias, de informações, de valores éticos e culturais etc.), bem como suas interferências nas decisões políticas, sociais, ambientais, econômicas e culturais).


Jucimar Cerqueira dos Santos

Doutorando em História Social pela UFBA, professor do Instituto Federal de Roraima e coordenador do projeto PIBICT “História Viva de Roraima”

E-mail: [email protected]

Instagram: @jucimarcerqueirados

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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