Professor avalia estruturação do racismo no Brasil: “Pele alva e pele alvo”

“Racismo se difere de outras formas de discriminação. O racismo deve ser entendido com um sistema de opressão, que se constituiu historicamente. Houve nos seculos 17 e 18 sobretudo uma base científica pautada no racismo biológico que tentava justificar a superioridade e a inferioridade de determinadas raças, e tudo isso contribuiu para a constituição do racismo enquanto um sistema de opressão”.

Do Sagres 

Imagem ilustrativa escrito "Racism"
(Foto: Getty Images/iStockphoto)

A avaliação foi feita pelo professor de Geografia da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e doutorando da Universidade Federal de Goiás (UFG), Vinícius Bonifácio. No mês da Consciência Negra no Brasil, o magistrado concedeu entrevista à Sagres 730, e abordou o tema, sobre como o racismo se estabeleceu e continua abrindo caminho na sociedade atual.

“Temos um Brasil no qual mais de 50% da população é negra, mas essa parcela da população não desfruta dos recursos, das benesses da mesma forma que o percentual não-negro da população”, afirma.

Segundo Bonifácio, a prova maior da mudança no racismo brasileiro é que a prática vem deixando de ser velada. “Nos Estados Unidos a arma, que é o racismo, está apontada para a testa do negro, pelo fato de nos EUA o racismo sempre ter sido declarado. Já no Brasil, nós dizíamos que a arma está apontada para a nuca. Isso já não é uma característica tão precisa do racismo no Brasil. Nós temos visto tantos casos de violência racial que pessoas negras têm sofrido que tem mostrado que o racismo no Brasil está bem claro, evidente”.

De acordo com o professor Vinícius Bonifácio, o racismo brasileiro existe em três formas: o individual, o estrutural e o institucional.

Individual: consiste em práticas de racismo do cotidiano, no esporte, nas ruas, no dia-a-dia;

Institucional: como as instituições produzem práticas racistas, como a falta de conteúdo sobre a história do negro nos livros didáticos;

Estrutural: a sociedade propaga o racismo para o individual e o institucional.

Negação

Para Vinícius Bonifácio, uma das maiores feridas abertas do racismo no Brasil é negar o problema. Não foram poucas as vezes em que figuras públicas se manifestaram com esse pensamento. Um dos mais emblemáticos foi o do presidente Jair Bolsonaro. Em maio, durante entrevista a uma emissora de televisão, o então peselista mostrou impaciência ao falar sobre o assunto, e disse que a prática é “coisa rara” no país.

“Essa coisa do racismo, no Brasil, é coisa rara. O tempo todo jogar negro contra branco, homo contra hétero, desculpa a linguagem, mas já encheu o saco esse assunto”, afirmou, em entrevista exibida na Rede TV.

Na última semana, um deputado estadual, do PSL, destruiu quadros de uma exposição na Câmara Federal. Uma das obras mostrava um negro morto no chão vestido com as cores da bandeira brasileira, e um policial militar se afastando do corpo com uma arma em punho. O parlamentar argumentou que a polícia não é responsável pelo que a mostra chamou de genocídio negro. “Para se tratar um problema, é preciso se reconhecer a existência de um problema”, avalia o professor.

O sistema econômico também contribui, segundo Bonifácio, para a manutenção do racismo no Brasil, e diz que um sujeito propaga a hegemonia das práticas racistas. “Branco, adulto, homem, heterossexual, cristão, burguês. Para a manutenção da hegemonia desse sujeito, ele precisa buscar estratégias de subalternização de outros sujeitos para a manutenção de seu poder, status e domínio”, analisa.

Cotas

Neste ano, a pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada no último dia 13, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), mostra que em 2018, o Brasil possuía mais de 1,14 milhão de estudantes autodeclarados pretos e pardos, enquanto os brancos ocupavam 1,05 milhão de vagas em instituições de ensino superior federais, estaduais e/ou municipais.

Os dados equivalem, respectivamente, a 50,3% e 48,2% dos mais de 2,19 milhões de brasileiros matriculados na rede pública.

“Nunca na história do Brasil, houve tantas pessoas negras nas universidades como hoje. É uma política necessária, fundamental. Ela não dá conta de resolver o problema na sua raiz, porque a raiz do problema é o racismo estrutural, mas a partir do momento em que se viabiliza que pessoas negras alcancem espaços que eram de privilégio do sujeito branco, nós estamos dando passos significativos para a minimização desse problema”, afirma.

Ismália

Se os números na Educação se mostram positivos, na Segurança Pública, o cenário é bem diferente. De acordo com o 13º Anuário de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2018 a polícia matou 6.220 pessoas, das quais 99,3% eram do sexo masculino, 77,9% tinham entre 15 e 29 anos e 75,4% eram negros.

“O Brasil sempre matou muito os negros. Nós temos um processo de extermínio da juventude negra. A polícia hesita menos ao atirar quando o alvo é um corpo negro. Recentemente eu ouvi uma frase do rapper Emicida que casa com esse momento em que ele diz o seguinte: ‘No Brasil existe pele alva e pele alvo’. O corpo suspeito é sempre o negro”

O trecho a que Bonifácio se refere é da música “Ismália”, do rapper Emicida com participação de Larissa Luz e Fernanda Montenegro, que você confere a seguir.

Vinícius Bonifácio avaliou ainda os últimos episódios de racismo no esporte, tanto no Brasil, quanto no exterior. Entre os casos mais recentes e próximos estão o de um torcedor do Atlético Goianiense contra um atleta do Paraná Clube, no Estádio Antônio Accioly. Em Minas Gerais, durante o clássico entre Cruzeiro e Atlético-MG, torcedores do Galo chamaram de “macaco” um dos funcionários que faziam a segurança nas arquibancadas.

Em nota, o Dragão afirmou que “repudia casos de racismo em qualquer esfera”, e espera que o caso seja investigado e o criminoso responsabilizado pelo acontecimento”. O clube disse ainda que irá estuda forma de punir “qualquer pessoa que pratique atos de racismo e/ou homofobia dentro das dependências do Estádio Antônio Accioly”. Confira a nota na íntegra a seguir.

“O Atlético Clube Goianiense repudia casos de racismo em qualquer esfera, principalmente no futebol, que é o campo onde o clube está diretamente envolvido. O atleta Eduardo Bauermman foi jogador do Atlético em 2017 e honrou a camisa do clube. Esperamos que o caso seja investigado e o criminoso responsabilizado pelo acontecimento. Durante a semana o clube irá estudar formas de punir qualquer pessoa que pratique atos de racismo e/ou homofobia dentro das dependências do Estádio Antônio Accioly. O Atlético se reconhece como clube de TODAS as famílias.”

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