Quando o refugiado é branco europeu

Os iguais a nós não poderiam ser atingidos pela violência que assola sírios e africanos

“A cobertura mais racista da Ucrânia na TV” foi denunciada pelo jornalista Alan MacLeod em seu Twitter, reproduzindo falas ou textos, como, por exemplo, “…olhar para eles, a maneira como estão vestidos. São pessoas prósperas, de classe média. Não são obviamente refugiados tentando fugir do Oriente Médio…ou do norte da África. Eles se parecem com qualquer família europeia que moraria do seu lado” (Al Jazeera).
“Isto não é o Iraque ou o Afeganistão…esta é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia”, diz Charlie D’Agata, correspondente da CBS.

“É muito emocionante para mim porque vejo pessoas europeias com olhos azuis e cabelos loiros sendo mortas”, diz o vice-procurador-chefe da Ucrânia, David Sakvarelidze, em entrevista à BBC.

“Elas não são como outras crianças que estamos acostumados a ver sofrendo na TV, essas crianças são loiras com olhos azuis, e isso é muito importante”, ressalta um entrevistado no canal espanhol La Sexta.

“Esses não são refugiados da Síria, eles são refugiados da Ucrânia… eles são cristãos, são brancos, são parecidos conosco”, segundo a BFM TV (França), explicando por que a Polônia está aceitando refugiados.

A dor e o espanto de ver refugiados de olhos azuis e cabelos loiros, brancos e cristãos “como nós”, “poderiam ser nossos vizinhos” explicitado, em expressiva parte da cobertura da guerra, revelam o quanto o pacto da branquitude de proteção e cuidados entre “iguais” é um fenômeno mundial e eurocêntrico. Não pode ser rompido, pois os “iguais a nós, brancos europeus”, não poderiam ser atingidos pela violência que assola refugiados sírios, afegãos, iraquianos, indianos e principalmente africanos.

Esse pacto se evidencia também nas denúncias de que refugiados ucranianos brancos têm primazia diante de refugiados indianos e africanos da Ucrânia, como temos visto repetidamente na imprensa.

“Africanos, não! Têm de ir para o fim da fila”, segundo relato do Visão, de Portugal. Militares ucranianos travam europeus nascidos em Portugal, na fronteira com a Polônia por serem negros e dão prioridade aos brancos.

Os próprios ucranianos não estão permitindo que africanos embarquem nos trens gratuitos para deixar a Ucrânia. “Há relatos de que a polícia ucraniana removeu todos os africanos dos trens, enquanto permitiam cidadãos de TODOS os outros países”, escreve um ex-ministro nigeriano, segundo a Folha.

Essa valorização de um grupo com perfil ariano, em detrimento de outros grupos, sempre esteve na base do nazismo. E o que se reivindica é que todos, independentemente da cor da pele, dos olhos e dos cabelos, tenham os mesmos direitos.

É fundamental atentar para a excelente reportagem da revista Fórum desta semana chamando a atenção para o fato de que a Ucrânia e os EUA foram os únicos, dentre 181 países, que se posicionaram contra uma resolução das Nações Unidas (ONU) de combate à glorificação ao nazismo.

Em dezembro de 2021, essa resolução, apresentada pela Rússia, foi aprovada e cita “combater a glorificação do nazismo, neonazismo e outras práticas que contribuem para alimentar formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata”.

Os EUA justificaram seu voto usando o argumento “liberdade de expressão”. Essa postura de minimização é perigosa e dá margem a uma insidiosa vitalidade ao discurso de grupos neonazistas sobretudo em países do Leste Europeu. Importante assinalar que o crescimento dos neonazistas vem se espraiando fortemente por toda a Europa e os Estados Unidos.

O racismo alimenta e justifica as desigualdades e funciona como aglutinador do discurso da violência. Grupos armados, milicianos e racistas desafiam o mundo democrático com o dogma das diferenças e do viés identitário exacerbado e violento.

É um grande desafio vencer a escalada do pensamento belicista e xenófobo que alimenta a violência nas sociedades contemporâneas. O combate ao racismo é peça fundamental nesse tabuleiro.




Cida Bento

Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

*Esta coluna foi escrita em coautoria com o economista Mário Theodoro Lisboa

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