James Marcelin nunca havia calçado chuteiras até os 15 anos de idade. Às vésperas de completar 30, coube justo a ele anotar um dos gols mais importantes da história da seleção haitiana. No placar, aquela bola pode ter representado pouco, diante dos sete tentos do Brasil. Porém, a importância do gol do meio-campista é incomparável. Para o país que vê a Copa América como um motivo de orgulho e a seleção brasileira como um símbolo de esperanças, o chute certeiro de Marcelin tem enorme significado. Algo perceptível principalmente pela vibração nas arquibancadas, onde a maioria era haitiana.
A história de Marcelin, por si, ainda o torna um herói mais emblemático. Afinal, ele é um sobrevivente do terremoto que atingiu o país em 2010 e deixou mais de 100 mil mortos. Nascido na cidade de Saint-Marc, o meio-campista começou a ganhar reconhecimento com o Puerto Rico Islanders, se destacando na Concachampions e na USL. O sucesso o levou a ganhar uma chance no Portland Timbers, assinando contrato com os americanos em dezembro de 2009. Passou as festas de fim de ano com a família no Haiti e se apresentaria ao novo clube em janeiro. Justo quando o terremoto aconteceu.
“Eu estava na casa da minha irmã, nos arredores de Porto Príncipe. Corri para a rua e as pessoas estavam ensandecidas. Elas corriam chorando, chocadas. Tinha gente morrendo na minha frente. Foi horrível”, declarou, em entrevista ao Guardian. O prédio onde Marcelin estava desabou. Por sorte, ele e seus familiares conseguiram se salvar. Todavia, incomunicável, o meio-campista chegou a ser dado como morto pelos amigos de seleção que não o encontravam. Dormia nas ruas, junto com outros milhares de haitianos desabrigados.
Depois de duas semanas, Marcelin conseguiu ser localizado por Eduardo Cantore, narrador esportivo em Porto Rico e torcedor fanático dos Islanders. O amigo que salvou sua carreira. “Qualquer um precisava de um visto dos Estados Unidos para deixar o país. A gente tinha que ficar onde estava, o que não me ajudava, porque precisava ir a Portland. Eu não tinha sinal de telefone. Fiquei preso no país por três semanas. Por sorte, Cantore trabalhava em uma empresa aérea que trazia suprimentos ao Haiti. Eu pude embarcar até San Juan e viajar aos Estados Unidos”, contou.
Em 11 de fevereiro de 2010, um mês após o terremoto, Marcelin foi apresentado pelo Timbers. Mas ainda permanecia em conflito, diante das dificuldades enfrentadas por sua família no Haiti. “Foi muito difícil para mim, não queria deixá-los e eles também não queriam que eu partisse. Eu tento não pensar sobre isso, porque não posso fazer o que quero. Se eu pensar, quero visitá-los”, relatou na época, ao Oregon Live.
Depois de dois anos em Portland, Marcelin também passou pelo FC Dallas, na MLS. Já nos últimos anos, deu sequência à carreira nas ligas secundárias dos Estados Unidos, jogando por Fort Lauderdale Strikers e Carolina RailHawks, seu clube atual, pelo qual foi eleito à seleção da NASL na última temporada. Enquanto isso, o meio-campista manteve seu espaço na seleção haitiana. Convocado pela primeira vez em 2007, disputou as Eliminatórias para a Copa de 2014 e a Copa Ouro de 2015. Esteve, inclusive, no jogo que marcou a volta da equipe nacional a Porto Príncipe, após quase dois anos atuando fora do país por causa do terremoto.
“Eu me sinto muito feliz por ver o que aconteceu no país e agora ver tantos haitianos vindo para o estádio. Foi incrível”, disse à CNN, em setembro de 2011. “Resta a nós apenas uma coisa, e ela é o futebol. Você pode jogar e todo mundo está te assistindo. A bandeira pode tremular em toda parte por causa do futebol. É a única coisa pela qual os haitianos vivem agora”. Pois o gol diante do Brasil serviu exatamente para dispersar a alegria de Marcelin por vários cantos. “É um milagre para nós ser parte da Copa América e um milagre termos sobrevivido. A esperança está aí. Nós apenas seguimos em frente. Não apenas dizendo, mas trabalhando. Nós sabemos que vários países são melhores que nós. Apenas trabalhamos para enfrenta-los”.
E, vencendo por seu esforço, Marcelin serve de exemplo para tantos jovens haitianos que desejam um dia viver do futebol. “Nós jogávamos descalços e chutávamos garrafas ou o que quer que tivéssemos nas ruas. Sair do Haiti é difícil. Não há informações sobre os jogadores que atuam lá. Isso está mudando lentamente agora, mas há poucos times e treinadores para observar. Se você for visto nas ruas, pode ter uma chance. O futebol me deu uma oportunidade de criar uma vida. Sou abençoado. Outros, porém, não tiveram a mesma sorte”, complementou ao Guardian. Sua bênção maior veio nesta quarta, e serve de estímulo para a sorte de tantos outros sonhadores como ele.