A fome esteve presente em mais lares brasileiros durante a pandemia da Covid-19, mas quantificar o contingente que convive com a escassez de alimentos ou com o risco de que falte comida se tornou um desafio para pesquisadores diante da inconstância dos programas de transferência de renda, ambiente político conturbado e da escalada da inflação.
Com a população mais vulnerável em uma espécie de montanha russa, passando por altos e baixos a cada redução, aumento ou boatos sobre corte dos auxílios do governo, estudos com métodos consolidados passaram a indicar quantidades divergentes de famélicos.
Em 2020, um levantamento do Banco Mundial chamou a atenção ao destoar das pesquisas que mostravam o avanço da fome. O estudo mostrou que o número de pessoas extremamente pobres caiu de 11,37 milhões para 4,14 milhões (menos de 2% da população) em relação a 2019, o menor nível da série histórica, iniciada em 1981.
Em um país com eleitorado dividido, as diferenças nas pesquisas estimularam discussões quanto à real dimensão da miséria.
Episódio recente que reacendeu a polêmica foi protagonizado pela ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Marina Silva errou ao declarar em sua participação no Fórum Econômico Mundial que 120 milhões de pessoas passam fome no Brasil. Os números mais aceitos estão entre 15 milhões e 33 milhões, pois representam o contingente em situação de insegurança alimentar grave.
Alguns dos principais especialistas em pobreza e desigualdade contaram à Folha por quais motivos é difícil dizer com precisão quantas pessoas não têm acesso à alimentação adequada no Brasil. Veja o que eles dizem:
QUANTAS PESSOAS PASSAM FOME NO BRASIL?
Há, pelo menos, três números mais aceitos: 15 milhões, 30 milhões e 33 milhões, sendo o último o apurado mais recentemente por meio do método mais reconhecido para se averiguar a privação provocada pela falta de dinheiro para comprar comida.
Entre o final de 2021 e o início de 2022, existiam no Brasil 33,1 milhões de pessoas cujo domicílio tinha um ou mais membros da família que não puderam realizar suas refeições por ao menos um dia nos três meses antes da pesquisa realizada pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional).
Isso significa 15,5% dos lares do país vivenciando experiências de fome na ocasião da apuração do 2º Vigisan (Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil – 2021/2022), a pesquisa nacional mais atual reconhecida por pesquisadores e autoridades que debatem o tema, incluindo a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura).
Quando considerados também os casos de insegurança leve, cuja principal característica é a preocupação com a falta de comida, e moderada, quando a família precisa pular refeições ou reduzir a qualidade da sua dieta, o número total sobe para 125,2 milhões (58,7% da população).
Outro estudo, realizado no último trimestre de 2020 e lançado no início de 2021, sob coordenação do Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, com sede na Universidade Livre de Berlim, também concluiu que quase 60% da população, ou 125 milhões de pessoas, enfrentavam algum nível de insegurança alimentar. Dentro desse grupo, 30 milhões —15% da população— eram casos graves.
“Uma pesquisa fortaleceu os resultados da outra sobre a situação da fome no país”, afirma o sociólogo Marco Antonio Teixeira, que liderou o grupo do estudo da Universidade Livre de Berlim.
Em janeiro deste ano, porém, a FAO apontou 15,4 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar grave ao divulgar o seu relatório Panorama Regional de Segurança Alimentar e Nutricional na América Latina e no Caribe de 2022.
Na comparação com o 2º Vigisan e com a pesquisa da Universidade Livre de Berlim, o número da FAO representa aproximadamente a metade dos casos que podem ser classificados como fome.
POR QUE PESQUISAS SOBRE FOME APRESENTAM NÚMEROS DIFERENTES?
Especialistas que acompanharam esses inquéritos afirmaram que as diferenças têm forte relação com o momento em que as entrevistas foram realizadas.
Por exemplo, os dados da pesquisa da FAO correspondem à realidade observada no triênio de 2019 a 2021. No caso do inquérito da Rede Penssan, a apuração ocorreu entre dezembro de 2021 e abril de 2022.
Diferenças de poucos meses ou até mesmo de semanas na data da realização do inquérito podem resultar em respostas divergentes porque fatores sociais e econômicos influenciam o grau de insegurança quanto ao acesso à comida, explica Francisco Menezes, assessor da organização humanitária da Action Aid e ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar.
Ele também cita as alterações nos valores do Auxílio Emergencial durante a pandemia como um fator que contribuiu para o crescimento dos casos graves de insegurança alimentar durante alguns períodos.
Instituído em abril de 2020 com um valor-base mensal de R$ 600 por família, o Auxílio Emergencial foi reduzido para R$ 300 no último quadrimestre do mesmo ano e, após ser interrompido, voltou a ser pago em 2021, com parcelas ainda mais baixas. O valor de referência era R$ 250.
COMO SÃO REALIZADOS OS INQUÉRITOS SOBRE SEGURANÇA ALIMENTAR?
A Ebia (Escala Brasileira de Insegurança Alimentar) é o método mais aceito para essa medição. É a base do Vigisan e também das pesquisas realizadas em anos anteriores pelo IBGE para averiguação do problema no país, que são os anexos sobre insegurança alimentar da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) e da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares).
Trata-se de um questionário com uma sequência de oito perguntas endereçadas a maiores de 18 anos. É basicamente o mesmo sistema aplicado pela FAO e pelos Estados Unidos, chamado Fies (sigla em inglês para Escala de Experiência em Insegurança Alimentar).
Cada resposta positiva atribui um ponto ao entrevistado e, desta forma, determina o grau de insegurança alimentar da família.
A EXTREMA POBREZA É MAIS ADEQUADA PARA MENSURAR A FOME?
Gabriel Lara Ibarra, líder da equipe de pesquisa sobre pobreza do Banco Mundial, diz que os dados de extrema pobreza não são os mais adequados para mensurar a fome porque falta no Brasil uma medida oficial da linha da pobreza estabelecida conforme a necessidade do consumo de calorias.
Na falta deste dado, pesquisadores recorrem a outros critérios. No caso do Banco Mundial, a extrema pobreza foi indicada como condição da família cuja renda per capita máxima era o valor de corte para acesso ao Bolsa Família, de R$ 178 mensais, na ocasião.
“Esses patamares são muito informativos para se medir uma situação de vulnerabilidade, mas não estão baseados em critérios para medição do consumo mínimo de calorias”, afirma Ibarra.
Embora as pesquisas sobre esses temas tenham no acesso à alimentação um ponto em comum, os objetivos são diferentes, explica Naercio Menezes Filho, professor do Insper e pesquisador da desigualdade.
“A definição que normalmente se dá à extrema pobreza é a condição de uma pessoa que não tem renda para comprar alimentos que tragam as calorias necessárias para que ela sobreviva de forma digna. A partir daí, se faz a conta do valor necessário para isso. Se a renda per capita da família for menor, a pessoa é extremamente pobre.”
“A pesquisa sobre insegurança alimentar [com base na Ebia] tem critérios bem definidos para classificar a situação como leve, moderada ou grave e, normalmente, chega mais próximo de saber o que a pessoa sentiu do que as pesquisas sobre pobreza, desde que a amostra seja representativa da população de cada região no país”, diz.
O 2º Vigisan realizou entrevistas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios, distribuídos nos 26 estados e no Distrito Federal.
A FAO investigou cerca de mil domicílios, segundo Rosana Salles Costa, professora do Instituto de Nutrição da UFRJ e pesquisadora da Rede Penssan. Ela reforçou que ambas seguiram critérios rigorosos de representatividade.
A FOME AUMENTOU NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA MESMO COM O AUXÍLIO EMERGENCIAL?
Houve crescimento dos números de fome quando observado todo o período mais agudo da crise sanitária, nos anos de 2020 e 2021, apontam os principais estudos sobre o tema. Mas o tamanho dessa variação gera dúvidas até mesmo entre estudiosos do tema.
Na comparação entre pesquisas que utilizam a Ebia, a insegurança alimentar grave passou de 5,8% da população, segundo a POF do IBGE de 2018, para 9%, em 2020, e 15,5%, em 2021, sendo esses dois últimos dados medidos pelos inquéritos Vigisan.
Uma das explicações apontadas por pesquisadores que acompanharam esses estudos é de que a inflação dos alimentos anulou parte do efeito do benefício. Esses pesquisadores também disseram que o cadastramento de beneficiários por meio do aplicativo para celular da Caixa Econômica pode ter dificultado o acesso da população mais vulnerável à renda.
Mas lacunas temporais não cobertas pelas pesquisas podem, mais uma vez, explicar resultados discrepantes.
A principal crítica aos inquéritos sobre insegurança alimentar é quanto à periodicidade. Esses estudos não cobriram todos os meses da pandemia e, por isso, podem ter deixado de capturar intervalos em que houve maior volume de transferência de renda para a população e, consequentemente, de redução momentânea da fome.
A comparação entre as pesquisas do IBGE e as da Rede Penssan não seria, portanto, a forma mais adequada para se estabelecer uma série histórica, afirma o economista Marcelo Neri, pesquisador da FGV e autor do estudo Mapa da Nova Pobreza.
Neri explica que os referidos inquéritos foram apurados em intervalos distantes e mediram períodos curtos —os entrevistados responderam sobre a falta de alimentos no trimestre anterior—, o que dificulta um diagnóstico preciso do efeito de eventos extraordinários, como a variação do valor do Auxílio Emergencial.
“O estudo da Rede Penssan conectado com os suplementos das Pnads e da POF, ambas do IBGE, é um certo trabalho heroico de construir uma série histórica. São estudos bem detalhados, mas não são tão comparáveis ao longo do tempo. Não é o mesmo que comparar laranjas do mesmo tipo. Uma é laranja seleta e a outra, lima.”
Apesar de questionar a precisão da comparação entre os levantamentos, Neri ressalta que essas pesquisas permitem afirmar que houve aumento da fome no país.
COMO É POSSÍVEL AFIRMAR QUE A FOME AUMENTOU SE HOUVE QUEDA DA EXTREMA POBREZA?
A queda da pobreza de fato ocorreu, mas foi momentânea. O estudo do Banco Mundial, que mostrou redução histórica no número de miseráveis, capturou o retrato do início do pagamento do Auxílio Emergencial, a partir do segundo trimestre de 2020, quando o benefício era maior e atendia a mais famílias, explicou o líder da equipe de pesquisadores, Gabriel Ibarra.
Estimativas do Banco Mundial atualizadas mostraram que as taxas de pobreza voltaram a subir e passaram a ser mais coerentes com os inquéritos sobre insegurança alimentar.
Depois de ter caído de 5,4% para 1,9% da população entre 2019 e 2020, a pobreza extrema aumentou substancialmente em 2021, avançando para 5,8% da população (cerca 12,3 milhões de pessoas), segundo projeções do Banco Mundial.
Neri, da FGV, reforçou com base nos números do Mapa da Nova Pobreza que houve aumento da população vulnerável. Nessa pesquisa, a pobreza extrema, que era de 5,3% da população em 2019, caiu para 4,9% em 2020, mas subiu para 5,9%, em 2021.
O número geral de pobres subiu de 25,1% para 29,6% entre 2020 e 2021, atingindo 62,9 milhões de brasileiros. “A pobreza alcançou o seu pior nível desde o início da série histórica, em 2012”, afirma Neri.
PESO E DESNUTRIÇÃO SÃO MEDIDAS CONFIÁVEIS PARA APURAR A FOME?
Avaliações médicas sobre nutrição são estudos que devem ser usados de forma complementar para o desenvolvimento de políticas públicas, mas eles não se sobrepõem aos inquéritos sobre segurança alimentar, explica Laura Muller Machado, professora do Insper e ex-secretária de Desenvolvimento Social de São Paulo.
Ela cita como exemplo o Sisvan (Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional) do Ministério da Saúde, que é usado na atenção básica e registra atendimentos dos postos de saúde. “É uma pesquisa feita por agentes comunitários de saúde, uma medição para identificar se há um problema nutricional ou não”, compara.
Disponível para consulta na internet, o Sisvan mostra que apenas 2,1% dos indivíduos adultos acompanhados (418 mil de um total de 19,7 milhões) apresentaram baixo peso em 2022, enquanto 35% (6,8 milhões) tinham sobrepeso.
Melissa Luciana de Araújo, nutricionista e uma das pesquisadoras do estudo conduzido pela Universidade Livre de Berlim, reforça que características como sobrepeso não são sinônimo de nutrição adequada ou ausência da experiência de fome.
MARINA SILVA ERROU AO AFIRMAR QUE 120 MILHÕES PASSAM FOME NO BRASIL?
Sim. Do ponto de vista técnico, somente os casos de insegurança alimentar grave podem ser descritos como fome. O número citado pela ministra engloba também os casos de insegurança alimentar leve e moderada.
Marina Silva conversou com a Folha sobre o tema e disse que, embora reconheça que há uma diferença entre os níveis de insegurança alimentar, sua experiência pessoal lhe confere uma perspectiva mais ampla sobre a fome.
“Faz parte da minha vida uma situação de insegurança alimentar. Aos dez anos de idade eu não sabia os conceitos técnicos, só vivia os dilemas na própria carne. Eu só comia macaxeira com molho de pimenta malagueta e garapa. Do ponto de vista técnico, minhas irmãs e eu estávamos de estômago cheio, ou de bucho cheio, como as pessoas costumam tratar dos pobres. Mas nós estávamos numa situação de fome”, disse a ministra.
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