O absurdo número de 121 pessoas mortas em uma operação policial realizada no Rio de Janeiro leva-nos a pensar sobre o valor da vida humana. Ao presenciarmos figuras públicas declarando que a operação foi um sucesso, percebemos a banalização da morte. Nesse sentido, a utilização política dessa operação – com seu apoio conveniente à matança visando a ganhos eleitoreiros – evidenciou a aporofobia em relação aos 121 mortos e o desrespeito à sacralidade da vida que imperaram nessa relação.
Trata-se de uma relação definida por Foucault como biopoder e por Mbembe como necropolítica. É a política aporófoba de extermínio dos pobres e o velho genocídio do povo negro desvelados por Abdias Nascimento, que continua a operar, convenientemente, sob o manto lustroso da manutenção da “ordem”.
Conhecemos o repertório de apoio, repetido como um mantra: “a população já não suporta mais o crime”; “os criminosos são uma erva daninha, temos que ir cortando, senão cresce”; “a polícia está em guerra”; “tem que matar mesmo”; “deveria jogar uma bomba nos territórios deles”; “inocentes vão morrer, mas numa guerra sempre há danos colaterais”; “direitos humanos são para pessoas de bem”. E assim por diante. Vamos, então, refletir sobre essas joias de sabedoria cívica.
É fato que, no Brasil, ninguém suporta mais a insegurança. Contudo, o povo pobre também não suporta mais a pobreza, a ausência crônica de políticas públicas sérias, a histórica ausência do Estado, o ter que esperar o dia todo em uma fila de hospital para, muitas vezes, não ser atendido devidamente, o racismo estrutural e o subemprego que se somam à insegurança vivenciada por toda a população.
É fato que, no país, há muitos criminosos. No entanto, a ideia de “ir cortando” tem sido a política genocida historicamente realizada nas periferias do Brasil. Ora, se essa tática é tão eficiente, por que o Estado brasileiro continua matando, se o problema da criminalidade jamais foi resolvido com os massacres? A polícia está em guerra? Ou o policial é apenas uma vítima instrumentalizada por uma engrenagem que, simplesmente, não tem interesse em mudar o status quo? Acreditando na falácia da guerra, a polícia está morrendo ao lado de jovens da favela — criminosos ou não —, que também estão morrendo…
Temos, por fim, os discursos de que “tem que matar mesmo”, de que direitos humanos seriam para as supostas “pessoas de bem”. Uma lógica enviesada que ignora o fato de vivermos em um Estado de Direito. Do contrário, estaríamos no estado de natureza hobbesiano, em uma luta de todos contra todos, sem leis e sem justiça. O problema é que, nesse estado, não existe mocinho nem bandido: todos teriam o direito de suprimir a vida do outro, o que seria uma barbárie total.
Será que tais políticos que defendem a matança realmente querem combater o crime? Não seria mais lógico minar os que financiam a criminalidade, impedir que armas da polícia e das forças armadas cheguem aos criminosos e realizar políticas públicas de qualidade? Políticas estas bem fiscalizadas contra desvios de toda ordem, nas favelas e zonas periféricas, oferecendo saúde, educação e perspectiva de empregabilidade?
Seria audacioso impedir que celulares funcionassem em presídios e que criminosos cometessem crimes sob a tutela do Estado? Seria audacioso realizar um processo de ressocialização sério, a partir de uma discussão profunda sobre a situação dos presídios no Brasil? Lembremo-nos que quem é tratado como bicho passa a acreditar que realmente o é. Não seria interessante manter policiais nas periferias trabalhando lado a lado com as comunidades? Não é possível pensar em um projeto-piloto que possa ir se expandindo para outras áreas? O que estamos propondo seriam ideias absurdas?
No entanto, não há compromisso em realizar essas ações. O que temos são consórcios de governantes com objetivos eleitoreiros, escritórios inoperantes e medidas emergenciais para apenas envernizar a tragédia; discursos aporófobos sem consideração pela vida humana. Enquanto isso, o povo preto e pobre tem que lidar diariamente com a violência e as chacinas. Aliás, o termo chacina entrou em desuso. Agora, é oficialmente chamado de megaoperação de sucesso.
Aldineto Miranda Santos – Doutorando em Educação e contemporaneidade pela Universidade do Estado Bahia – UNEB e professor de Filosofia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA.
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