“Quase todo o Brasil cabe nessa foto”

 Pondo em discussão o episódio envolvendo a atriz Fernanda Lima e as babás de seus filhos – as irmãs Ângela e Tayane Dias –, este artigo apresenta argumentos voltados para pensar a partilha do comum por grupos subalternizados. Ao veicular imagens de suas funcionárias com trajes de passeio, a atriz impede, indiretamente, a  participação delas num território comum partilhado como donas de sua história e de suas escolhas estéticas.

 Enviado por Rosane Borges via Guest Post para o Portal Geledés

A frase com a qual titulo este artigo é de Luiz Felipe Alencastro e integra uma análise fotográfica bastante conhecida feita por este historiador em A história da vida privada no Brasil (vol.2). Os personagens da imagem são uma mulher negra escravizada, uma mucama, ladeada por um menino branco do qual era cuidadora, conforme mostra imagem a seguir. Tirada em Recife, em 1860, a foto, muito difundida e alvo de inesgotáveis apreciações, é perturbadora, dada as ambivalências que carrega, revelando e ocultando os meandros do servilismo, da política dos afetos, do corpo que se presta à captura do olhar do outro, mas que também se impõe.

Em sua descrição, diz Alencastro: “A imagem de uma união paradoxal, mas admitida. Uma união fundada no amor presente e na violência pregressa. A violência que fendeu a alma da escrava, abrindo o espaço afetivo que está sendo invadido pelo filho do senhor”. [1]

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O recente episódio envolvendo a atriz Fernanda Lima e as babás de seus filhos, duas mulheres negras, nos reenvia para a fotografia de 1860. Causou espécie a imagem divulgada pela atriz em que aparecem, felizes e bem vestidas, as irmãs Ângela e Tayane Dias. A legenda, com ar de benfeitoria, traduzia o porquê do registro: “Aqui em casa não tem essa de babá vestida de branco! Olha o grau das mina (sic)”. Podemos dizer que quase o Brasil todo também cabe na foto da atriz!

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A contra-ofensiva, como era de se esperar em tempos de circulação online, foi instantânea: antagonistas e defensoras(es) transbordaram o Instagram da atriz com mais de 400 comentários. Reagindo a um postincisivo, responde Fernanda Lima:

“Querida, essas meninas são filhas de uma grande amiga e não trabalhavam. Quando tive meus meninos, liguei pra elas perguntando se elas queriam uma oportunidade de trabalho porque eu estava disposta a ensinar, já que saquei que, apesar de difícil, a profissão de babá pode ser muito rentável. Desde então elas convivem com nossa família, comemos na mesma mesa, conversamos e trocamos confidências como amigas e ainda as remunero muito bem. Sem queixas, nem crises por parte de ninguém”.

Pelo que se nota, a emenda saiu pior que o soneto. E por inúmeras razões. Vamos a algumas delas.

Quem pode falar num espaço comum?

A declaração de Fernanda Lima advém da mesma matriz dos discursos propalados por benevolentes patroas país a fora, bebe da mesma fonte que alimenta o imaginário dos afetos que as classes abastadas (ou as que assim se pensam) dizem nutrir pela criadagem. Quem nunca ouviu as cândidas e enternecedoras frases: “a minha empregada é quase da família”; “lá em casa a empregada come na mesma mesa que a gente”, e por aí vai. Algumas avançam: “aqui em casa não tem esse negócio de empregada doméstica, aqui a gente tem secretária” (como se, pela “inócua” nomeação, o estatuto de doméstica se alterasse ou se as relações, por vezes de exploração, mudassem de natureza, ao modo de um passe de mágica).

A legenda da imagem e a resposta da atriz estão no mesmo diapasão das corriqueiras frases que elencamos acima, reforça o padrão que lastreia uma formação discursiva sobre o assunto, donde formação discursiva é vista aqui da forma em que pensadores como Michel Foucault e Patrick Charaudeau a conceberam: uma série de enunciados que responde as mesmas regras de constituição. Uma formação discursiva supõe, portanto, memória, lastro histórico, permanência, dialogismo com formas do passado que se reatualizam… Em suma: quase todo o Brasil cabe na foto de Fernanda Lima! Resta curioso que muitas dessas vozes também foram e são contra a PEC das empregadas domésticas. Preferem a tutela ao reconhecimento, as barganhas desiguais à garantia de direitos.

Ao falar pelas babás, Fernanda Lima subtrai de suas funcionárias a dignidade que quer imputar a elas por meio de roupas comuns, “de passeio”. E subtrai porque fala por elas no território comum partilhado em que as redes sociais ganham abrigo: a web. Vem de longe a discussão sobre as interdições ou impossibilidades daqueles que não podem falar num espaço comum. Aristóteles e Platão, por exemplo, definiram hierarquicamente um território comum onde só alguns podiam participar. O cidadão, para Aristóteles, é aquele que pode governar e ser governado. O animal falante é, para este filósofo, um animal político, atributo do qual o escravo é destituído, pois se compreende a linguagem não a possui.  Para Platão os artesãos não podiam participar da partilha do comum porque não tinham tempo para se dedicar a outra coisa que não o trabalho manual. Jacques Ranciére, em A partilha do sensível, empreende análise que “faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce. Assim, ter esta ou aquela ocupação define competências ou incompetências para o comum”.

Ainda que as duas irmãs sejam atuantes nas redes sociais (e provavelmente são, como há de se supor), foi pela voz da “patroa” que elas emergiram na cena pública, no espaço do comum numa referência com aparente valor simbólico. Mais uma vez: quase todo o Brasil cabe na foto de Fernanda Lima.

Se quisermos abreviar a questão, nem precisamos ir tão longe, nos embrenhando pela filosofia. A máxima cristã, oriunda do provérbio judaico, sintetiza o problema da imagem: “A caridade deve ser anônima, do contrário é vaidade”. Não cabe, assim, a Fernanda Lima publicizar a sua decisão de liberar as suas babás do uniforme, fazendo disso prova inequívoca, quase um troféu, de sua “bondade”.

Muitas críticas não hesitaram em enxergar na atitude da atriz um ataque de sinhá. Revoltada com o epíteto, Fernanda Lima desabafa: “Estou meio cansada dessas discussões e interpretações de texto alucinadas da rede. E também torço pela alternância de poder. Seria maravilhoso um presidente negro. Pelo menos concordamos em algum ponto”. E não foi só ela que se mostrou cansada. Uma legião de fãs desfiou um rosário de argumentos para demonstrar quão fora da casinha estavam todas(os) aquelas(es) que enxergaram algum fio de racismo ou resquício escravocrata na fotografia amplamente divulgada. Para ela, Fernanda, tal acusação é de uma injustiça sem par, até porque “ainda” as remunera muito bem (prestemos atenção na expressão adverbial “ainda”, que significa mais, além, até agora, até então). Não sabem Fernanda Lima e seus apoiadores que o reconhecimento do outro não passa somente por bons salários, “roupas de passeio” no horário do expediente, tampouco por conversas amistosas, íntimas até, entre patroa e empregada. Passa pela partilha do comum (que não é a partilha das confidências), esse lugar socialmente compartilhado (onde moram a política, a estética, as decisões que concernem a maioria…), que desde sempre foi interditado aos escravizados e subalternizados. É sintomático que os comentários elogiosos sobre a foto não se dirijam diretamente às babás, mas, sim, à atriz, relegando Ângela e Tayane ao silêncio e, no melhor dos casos, a uma fala por procuração.

A insurgência de porções significativas da militância negra contra a publicação da fotografia não põe em questão o fato de a atriz cumprir ou não com suas obrigações de empregadora, tampouco se Ângela e Tayane Dias são próximas ou distantes da família do casal afamado. A altissonante reprovação coloca em jogo a disputa por um território comum onde quem foi escravizada quer falar por si própria. Falar, e não ser falado por outrem, num espaço comum, tornou-se, mais do que nunca, uma reivindicação absolutamente necessária em tempos de hiperinflação de imagens. A desconsideração dessa prerrogativa pela atriz e seus apoiadores faz com que “quase todo o Brasil caiba nessa foto tanto quanto coube na de 1860.

Não foi à toa que Lélia Gonzalez, uma das mais fortes expressões do feminismo negro, principia um seminário com uma frase tão cortante quanto necessária: “na medida em que nós, negros, estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim o determina a lógica da dominação, assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa”.

Tratar empregadas domésticas com gentilezas é algo bem vindo, sem dúvida, mas está longe de ser o passo essencial que possibilita a plena autonomia de milhares de mulheres negras que ainda não partilham a sua fala no espaço comum por onde se tece a trama do mundo.

 

[1] Eis o trecho da análise de Alencastro: “A fotografia feita no Recife por volta de 1860. Na época era preciso esperar no mínimo um minuto e meio para se fazer uma foto. Assim, preferia-se fotografar as crianças de manhã cedo, quando elas estavam meio sonolentas, menos agitadas. O menino veio com a sua mucama, enfeitada com a roupa chique, o colar e o broche emprestado pelos pais dele. Do outro lado, além do fotógrafo Villela, podiam estar a mãe, o pai e outros parentes do menino. Talvez por sugestão do fotógrafo, talvez porque tivesse ficado cansado na expectativa da foto, o menino inclinou-se e apoiou-se na ama. Segurou-a com as duas mãozinhas. Conhecia bem o cheiro dela, sua pele, seu calor. Fora no vulto da ama, ao lado do berço ou colado a ele nas horas diurnas e noturnas da amamentação, que os seus olhos de bebê haviam se fixado e começado a enxergar o mundo. Por isso ele invadiu o espaço dela: ela era coisa sua, por amor e por direito de propriedade. O olhar do menino voa no devaneio da inocência e das coisas postas em seu devido lugar. Ela, ao contrário, não se moveu. Presa à imagem que os senhores queriam fixar, aos gestos codificados de seu estatuto. Sua mão direita, ao lado do menino, está fechada no centro da foto, na altura do ventre, de onde nascera outra criança, da idade daquela. Manteve o corpo ereto, e do lado esquerdo, onde não se fazia sentir o peso do menino, seu colo, seu pescoço, seu braço escaparam da roupa que não era dela, impuseram à composição da foto a presença  incontida de seu corpo, de sua nudez, de seu ser sozinho, da sua liberdade. O mistério dessa foto feita há 130 anos chega até nós. A imagem de uma união paradoxal mas admitida. Uma união fundada no amor presente e na violência pregressa. A violência que fendeu a alma da escrava, abrindo o espaço afetivo que está sendo invadido pelo filho do senhor. Quase todo o Brasil cabe nessa foto.”

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