“Que currículo ótimo, pena que é mulher”

Enviado por / FonteLOLA ARONOVICH

A A. me mandou este relato sobre a mais pura discriminação. Depois empresários reclamam que faltam técnicos especializados…

Escrevo esse e-mail como um desabafo, sempre vejo mulheres compartilhando suas histórias e gostaria de contar a minha, que pode até parecer que aconteceu há décadas, mas não…
Moro em uma região onde a economia gira em torno do minério de ferro.

O mercado de trabalho é muito competitivo, devido, em grande parte, ao número de trabalhadores que migram para cá, provendo mão de obra barata. Meu pai e irmãos (sou a única mulher) são mecânicos em empresas de mineração e, influenciada por esse meio e sempre admirando meu pai, resolvi também seguir essa carreira. Quando fiz essa escolha sabia do machismo na profissão e da dificuldade, mesmo para homens, de conseguir emprego, mas julguei que, com meu esforço e dedicação, eu teria alguma chance.

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Fiz o ensino médio integrado a um curso de aprendizagem industrial (semelhante aos cursos oferecidos pelo Senai) e, embora tenha recebido bolsa de estudos de uma empresa, não tive maiores oportunidades de ingressar como funcionária. Terminei o curso, que dava noções práticas de mecânica, eletrotécnica e eletrônica, como uma das primeiras da turma. Enquanto fazia alguns bicos como soldadora, resolvi tentar a prova para um curso técnico público muito concorrido na cidade. Passei em primeiro lugar; minha carreira parecia promissora, não é? Mas eu simplesmente não tive a oportunidade de saber.

mulher-trabalho

Para obter o certificado de técnica em mecânica, eu precisaria realizar um estágio. Logo no primeiro dia de aula foi avisado na sala que os cinco primeiros colocados no processo seletivo deveriam ir à secretaria, pois uma empresa da região os cadastraria e ofereceria o estágio a partir do segundo semestre. No intervalo da aula fui até lá e qual não foi a minha surpresa ao perceber que os contemplados se tratavam literalmente dos cinco primeiros colocados, ou seja, eu e uma outra garota, que havia passado em terceiro lugar, fomos ignoradas; na lista constavam apenas os rapazes. Perguntei a uma funcionária e era isso mesmo: só homens.

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Continuei empenhada nos estudos e no ano seguinte surgiu uma nova oportunidade, em parceria com outra instituição, que ofereceria cursos de capacitação em suas dependências. A escola contrataria alguns alunos, como auxiliares de laboratório. Novamente o que contava eram as notas, e dessa vez não fui excluída de cara, poderia participar de um curso na outra instituição; ao final desse, seriam escolhidos os contratados. Os cursos que seriam oferecidos eram AutoCAD [programa de desenho técnico de engenharia] e Soldagem, adivinha em qual me colocaram?

Mesmo eu tendo claramente explicitado minha preferencia por soldagem, obviamente eu deveria ficar no curso mais adequado para mulheres, segundo eles. Desenho técnico é uma área importante, longe de mim criticar esses profissionais, mas não era a que me interessava, por que eu não podia escolher? Reclamei, fiz milhões de requerimentos e finalmente consegui trocar de curso, mas não adiantou nada, embora eu tenha tido um desempenho superior, afinal já tinha experiência na área, não fui escolhida. Como é que uma garota ia conseguir carregar caixas de eletrodos? Preparar peças? E imagina só como é que eu ia aguentar usar aqueles equipamentos de proteção malcheirosos de raspa de couro?

Já no ultimo semestre do curso, fui avisada por uma funcionária que em uma semana haveria uma nova entrevista de estágio. Preparei meu currículo, novamente esperançosa, e compareci no dia da entrevista. A moça que havia me falado da seleção ficou surpresa em me ver e perguntou o que eu fazia ali. Estava lá pra concorrer à vaga, é claro. Então ela pediu desculpas e me explicou que havia me informado da vaga para eu avisar meu namorado, que também fazia o curso — as vagas eram só para homens.

Eu não conseguia acreditar! Era uma frustração tão grande, que não consegui fazer nada, só deixei o currículo e fiquei lá fora, esperando pelo meu namorado (olha só! Eu tinha feito meu papel de mulher, avisei a ele). Enquanto voltávamos pra casa, ele me contou que, durante o processo seletivo, folhearam meu currículo e o consenso tinha sido: “Nossa, que currículo ótimo, pena que é mulher”.

Durante todo o curso tentei outros estágios. As exigências para empresas se conveniarem com a escola eram grandes, o que diminuía bastante as opções. Fiz provas, dinâmicas, entrevistas, mas nunca fui chamada. Nessas outras situações, pode ser que eu tenha sido reprovada por outros motivos, talvez não tenham me considerado boa trabalhando em equipe, ou que eu não seja proativa ou qualquer desses quesitos que tanto ouvi falar. Mas não tenho como não suspeitar do fato de que, das cinco meninas da sala, a única que conseguiu o certificado foi a que aceitou continuar no AutoCAD.

1 a 1 a a a a mac meninas conhecam seus direitos

Se eu tivesse fracassado por não ter sido esforçada, motivada ou mesmo inteligente o suficiente ficaria triste, mas nada se compara a esse gosto amargo, de não me ser permitido nem competir. Na época, seis anos atrás, eu não era feminista, nem tinha ideia de como lutar pelos meus direitos, e vejo aí a importância do feminismo se comunicar com as jovens, pois muitas feministas que conheço nem sonhavam com uma realidade diferente na adolescência. Naquela época, se soubesse um pouco mais, talvez tivesse escrito uma história diferente, lutado mais, talvez até contribuído para uma melhora para as garotas que ingressaram depois de mim.

Minha família sempre me apoiou muito, sempre deu muita força e incentivou que eu seguisse a carreira que quisesse. Mas me deixou um tanto triste ver que eles trataram a forma como tudo aconteceu com naturalidade, pois viam situações como a minha todos os dias trabalhando na área e já achavam aquilo normal.

Depois desses acontecimentos todos, parei de tentar ingressar em empresas, cursei Pedagogia, fiz concurso e acabo de iniciar o trabalho com orientação em uma instituição de ensino técnico e tecnológico. Quero lutar constantemente para incluir um olhar de diversidade nas ações da escola, preocupação que simplesmente não existiu quando era eu a aluna.

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