‘Que opção nos deixam?’: as mulheres que viajam centenas de quilômetros para abortar nos EUA

Enviado por / FonteG1, por AFP

Expectativa é que mais da metade dos estados torne o procedimento ilegal, obrigando as mulheres a viajar centenas de quilômetros para ir a estados liberais podem manter regulamentos locais.

Quando F. descobriu que estava grávida pela oitava vez, teve vontade de chorar. Dona de casa e dependente do marido, agonizou durante três semanas sobre o que fazer e sempre chegava à mesma conclusão: “Não posso ter esse filho”.

A coisa mais difícil para ela foi descobrir como os Estados Unidos se tornaram hostis contra o aborto. “Que opções eles nos deixam?”, perguntou a mulher de El Paso, no estado conservador do Texas.

Depois que a Suprema Corte derrubou esse direito na sexta-feira (24), a expectativa é que mais da metade dos estados torne o procedimento ilegal, obrigando as mulheres a viajar centenas de quilômetros para ir a estados liberais que, devido ao sistema federal, podem manter regulamentos locais.

F., que pediu anonimato para não ser julgada, teve sorte de encontrar uma consulta a 45 minutos de casa.

A Clínica de Saúde Reprodutiva das Mulheres funciona desde 2015 em Santa Teresa, uma pequena cidade no Novo México, na fronteira com o Texas. A localização é única. Fica em um estado onde o aborto é legalizado, mas a cinco minutos da fronteira com o Texas, onde o procedimento é proibido após a sexta semana, quando muitas mulheres ainda não sabem que estão grávidas.

Na sala de espera da clínica, a maioria das mulheres chega sozinha e aguarda em silêncio. As paredes em tons quentes contrastam com o uniforme fúcsia de algumas enfermeiras. Outros vestem camisetas com o mapa do Texas e a legenda: “A acusação é injusta”.

As pacientes dizem que se sentem envergonhadas e julgadas em seus ambientes sociais, mas com máscaras cobrindo metade do rosto ganham anonimato. Uma por uma, elas são chamadas por números e não por seus nomes.

Ataques

“A coisa mais difícil para mim foi decidir como chegaria aqui, porque sei que há muito estigma”, diz Ehrece, uma engenheira de 35 anos que viajou mais de 1.600 quilômetros de Dallas.

“Pedi ao taxista que me deixasse no posto de gasolina mais à frente e caminhei até aqui, para não saber para onde estava indo”, admitiu a jovem ,que tem namorado e que não quer começar um família agora por motivos profissionais.

Ehrece não exagera. A chamada “Lei do Batimento Cardíaco” em vigor no Texas desde setembro permite criminalizar qualquer pessoa que contribua para o procedimento, incluindo motoristas ou pessoal médico.

“Eles não facilitam as coisas para você”, lamentou Emily, uma professora de yoga de 35 anos que não quer ser mãe. “Antes de vir você se preocupa que alguém te ataque fora da clínica ou que algum louco virá com uma arma”.

As mudanças não assustam o Dr. Franz Theard, responsável pela clínica. O obstetra de 73 anos realiza abortos desde 1984, pouco antes de agressores nos Estados Unidos bombardearem clínicas e matarem médicos.

“Tivemos sorte que o estado do Novo México tenha leis muito liberais”, disse ele à AFP. “Temos certificação para tudo, mas eles não nos perseguem. No Texas, tínhamos que relatar todos os detalhes de cada paciente mensalmente”.

Theard não faz mais cirurgias, prescrevendo apenas pílulas abortivas, permitidas até a décima semana no Novo México: um comprimido de Mifepristone, que impede o avanço da gravidez, e quatro de Misoprostol no dia seguinte, que induzem o sangramento. O procedimento custa US$ 700, com algumas exceções socioeconômicas.

Como as enfermeiras e assistentes da clínica, Theard não teme retaliação nem se intimida com as poucas pessoas que ficam do lado de fora de sua clínica todos os dias pedindo às pacientes que repensem sua decisão.

Lá dentro, o telefone não para de tocar. “Quantas semanas você tem?”, pergunta ao telefone a assistente Rocío Negrete. “Temos consultas, mas só podemos atendê-la se for até a décima semana”, continua.

O diálogo é repetido várias vezes ao dia. Negrete conta que, com as restrições, aumentou o número de pacientes de outros estados. Mas algumas mulheres, por medo ou razões econômicas, cruzam outra fronteira.

‘Exaustivo’

A meia hora de carro, na cidade fronteiriça mexicana de Ciudad Juárez, algumas farmácias vendem o Misoprostol sem receita, também indicado para tratar úlceras. A caixa de 28 comprimidos custa entre US$ 20 e US$ 50. A mifepristona não está disponível abertamente, mas é oferecida de forma ilícita.

“As mulheres compram isso e não sabem como tomar”, disse um farmacêutico na Ciudad Juárez com uma caixa de Misoprostol nas mãos. “É um perigo, elas podem ter hemorragia, então é melhor consultar um médico”.

Em Santa Teresa, as mulheres, com diferentes contextos e circunstâncias econômicas, concordam que daí a importância da legalidade do procedimento e de acabar com o estigma.

“Se uma mulher quiser fazer um aborto, ela o fará. Haverá todo tipo de alternativas ilegais, com as quais uma mulher pode até morrer”, diz Ehrece.

“É exaustivo. Não faz sentido que em 2022 não possamos tomar nossas próprias decisões”, acrescenta.

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