Quem é bela, recatada e do lar?

Comecei a ler “mulher, raça e classe” da Angela Davis e logo nas primeiras páginas, ainda que o primeiro capítulo seja um levantamento da relação entre senhores e homens e mulheres escravizadas vi o quão atual são suas palavras pra essa onda de feminismo que temos hoje, mesmo que a obra tenha sido escrita em 1981. Em especial após a matéria da Veja, na qual tenta impor de forma “sutil” a imagem que a mulher deveria ter, “bela, recatada e do lar”, um trecho em especial me chamou atenção; nele Davis diz:

“Enquanto a ideologia do feminismo – um subproduto da industrialização – foi popularizada e disseminada através das novas revistas de mulheres e novelas românticas, as mulheres brancas foram vistas como habitantes de uma esfera cortada do domínio do trabalho produtivo. A clivagem entre a casa e economia pública, trazida pelo capitalismo industrial, estabeleceu a inferioridade feminina mais firmemente do que nunca antes. “Mulher” tornou-se um sinônimo da propaganda prevalecente de “mãe” e de “dona-de-casa”, e ambas “mãe” e “dona-de-casa” eram marcas fatais de inferioridade. Mas entre as escravas negras, este vocabulário não tinha lugar. Os arranjos econômicos da escravatura contradiziam a hierarquia do papel sexual da nova ideologia. As relações de homem x mulher dentro da comunidade escrava não estavam conformadas com o modelo ideológico dominante.”

Por Zaira Da Silva Conceição via Guest Post para o Portal Geledés 

É interessante perceber que a imagem da mulher bela, recatada e do lar, é um resgate dessas mulheres dos séculos passados, a imagem que para os olhos do patriarcado, nunca deveria ter mudado. No entanto, como o trecho deixa bem claro, não são todas as mulheres que têm o privilégio de serem denominadas mulheres. Porque às mulheres está reservada a imagem da maternidade e da fragilidade. Dificilmente essa imagem é destinada à mulher negra. Mulher negra, mesmo hoje, ainda luta pra ser vista como mulher; na época da escravatura, pois, era tão animal e selvagem como os homens negros. O trabalho árduo e compulsório destituía-lhes tanto a aparência quanto o comportamento “feminino” que as mulheres brancas tinham.

À mulher negra, os adjetivos dados são sempre relacionados aos obstáculos que a colonização lhes destinou. É comum sermos chamadas de guerreiras, sermos elogiadas por nossa força com olhares de admiração (ou pena) por ser de conhecimento geral que o que uma mulher negra enfrenta, não tem a mesma carga social que a mulher branca. A mulher negra sempre teve consigo resquícios da escravatura, numa nova reconfiguração escravocrata onde as funções servis permanecem sob nomes diferentes; as amas de leite e mucamas hoje são babás, governantas, empregadas domésticas, diaristas e etc. E prova de que os direitos dessas trabalhadoras demoraram tanto a serem garantidos (ainda demoram), é por ter entre elas uma maioria negra, pobre e periférica. A lógica da senzala prevalece e a mulher negra hoje é vista como tudo, menos como “bela, recatada e do lar”.

Não existe beleza quando o padrão é branco, não existe recato quando se é exposta e apreciada como a mulata de exportação, o sexo quente, a globeleza no carnaval. Não existe “do lar”, quando o lar que deve zelar não é o seu. Quando o lar que cuida é da sinhá que tanto lutou pra ter seu lugar no mercado de trabalho. O mercado de trabalho da mulher negra é a cozinha da mulher branca.
Desconstruir o pensamento de que a mulher não precisa ser bela, recatada e do lar, é fácil. Difícil é querer ser tudo isso e ser vista apenas como objeto produtivo e barato de trabalho.

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