Quem foi o ‘Messias Negro’, líder dos Panteras Negras morto pela polícia e que agora é tema de filme

Na Chicago de 1968, ele já havia ganhado fama por seu talento como orador e como organizador comunitário, mas também chamado a atenção do FBI (a polícia federal americana), na época ainda sob o comando de J. Edgar Hoover.

O FBI mantinha um programa secreto de contrainteligência chamado Cointelpro, com o objetivo de “expor, desestabilizar, desacreditar e neutralizar as atividades de organizações nacionalistas negras e grupos de ódio”.

Vários líderes negros da década de 1960, como Martin Luther King e Malcolm X, eram vigiados pelo FBI. Em um memorando interno, sem citar Hampton especificamente, Hoover alertava para a necessidade de evitar o surgimento de um “messias”, que pudesse “unificar e eletrizar o movimento militante nacionalista negro”.

A trajetória de Hampton e as ações do FBI são retratadas no filme Judas e o Messias Negro, dirigido por Shaka King, que estreou na semana passada nos Estados Unidos. O ativista é interpretado por Daniel Kaluuya, que recebeu indicação para o Globo de Ouro por sua performance.

Apesar de o filme tratar de episódios históricos, convém avisar que o texto a seguir contém spoilers.

Em 4 de dezembro de 1969, aos 21 anos de idade, Hampton foi morto em uma invasão da polícia ao apartamento onde estava com outros membros dos Panteras Negras.

A ação foi facilitada por detalhes fornecidos por William O’Neal, um informante do FBI infiltrado no grupo, que no filme é interpretado por Lakeith Stanfield. A extensão do envolvimento do FBI só viria à tona anos depois.

Ativismo e carisma
Nascido em 1948, Hampton demonstrou desde cedo vocação para o ativismo. Ainda adolescente, passou a atuar na Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês), uma das principais organizações de direitos civis dos EUA.

No ensino médio, organizou manifestações contra o racismo e pela contratação de mais professores e administradores negros. Também fez campanha para a construção de uma piscina comunitária que não fosse segregada, aberta para crianças negras, em Maywood, na região metropolitana de Chicago, onde cresceu.

“Ele não conseguia aceitar nenhum tipo de injustiça”, diz à BBC News Brasil advogado de direitos civis Jeffrey Haas, co-fundador do coletivo de advocacia People’s Law Office, que tinha entre seus clientes os Panteras Negras, ativistas comunitários e opositores da Guerra do Vietnã.

Haas conheceu Hampton pessoalmente e representou sua família na ação civil contra a polícia e o FBI após o assassinato. Ele é autor do livro The Assassination of Fred Hampton: How the FBI and the Chicago Police Murdered a Black Panther (“O Assassinato de Fred Hampton: Como o FBI e a Polícia de Chicago Assassinaram um Pantera Negra”, em tradução livre).

“Mesmo depois de formado (no ensino médio), o diretor da escola costumava chamá-lo de volta quando havia confrontos raciais, porque ele conseguia conversar com os dois lados”, lembra Haas.

O carisma como orador era fruto não apenas de talento, mas de esforço. Haas conta que Hampton tinha dificuldades para falar em público quando pequeno. Ele passou a estudar a maneira como os pastores faziam seus sermões na Igreja e a repetir e decorar discursos de líderes negros como Martin Luther King e Malcolm X.

“Ele se tornou um orador muito poderoso, que conseguia realmente atrair respeito e atenção do público”, observa Haas, que lembra da primeira vez que viu Hampton falar em público, em agosto de 1969.

“Em determinado momento, ele fez o público levantar, erguer o punho fechado e repetir ‘eu sou’. E, depois, dizer ‘um revolucionário’. E eu não conseguia dizer isso. Eu me considerava um advogado do movimento, mas não necessariamente parte do movimento. Mas lá pela terceira ou quarta vez eu já estava repetindo, de maneira hesitante. E lá pela sétima vez, eu estava gritando, assim como os outros.”

‘Coalizão Arco-Íris’
Haas também lembra do momento em que Hampton pareceu prever a própria morte, ao dizer, em discurso poucos meses antes de ser assassinado, que não iria morrer em um acidente de carro, ou escorregando no gelo, ou por ataque cardíaco, ou por câncer no pulmão.

“Acredito que vou morrer fazendo o que nasci para fazer”, disse Hampton.

Ao assumir a liderança do Partido dos Panteras Negras em Illinois, Hampton estabeleceu vários programas comunitários, entre eles um que oferecia café da manhã gratuito a crianças em idade escolar. Também planejou a instalação de uma clínica médica.

Ele promoveu uma aliança com outros grupos que protestavam por direitos civis, contra o racismo, brutalidade policial e pobreza, na chamada “Coalizão Arco-Íris”, que incluía os Young Lords (grupo de ativistas porto-riquenhos) e os Young Patriots (ativistas brancos com origens no sul do país que lutavam contra a pobreza).

Hampton também se aproximou de gangues de rua que atuavam em Chicago. “Ele tentou organizar as gangues para que se tornassem mais políticas”, observa Haas. “Acho que a polícia via isso como uma ameaça tremenda, caso a comunidade negra jovem realmente se organizasse de uma maneira política.”

Haas salienta que o fato de os Panteras Negras serem uma organização militante, com um programa revolucionário, que defendia o direito a autodefesa e protestava contra violência policial em comunidades negras, contribuía para torná-los um alvo.

Os Panteras Negras defendiam o direito de portar armas e de resistir de maneira violenta, se necessário, à brutalidade policial. Costumavam se referir a policiais como “porcos”.

Na visão do FBI e da polícia, os Panteras Negras eram um grupo radical e extremista que deveria ser confrontado. Hoover se referia a eles como “a maior ameaça à segurança interna do país”.

Violência
Criado em 1966 em Oakland, na Califórnia, pelos estudantes negros Bobby Seale e Huey P. Newton, o Partido dos Panteras Negras surgiu como um grupo comunitário de luta contra a brutalidade policial e o racismo.

“Eles rapidamente cresceram e se transformaram em uma organização internacional”, diz à BBC News Brasil a historiadora Jane Rhodes, chefe do Departamento de Estudos Afro-Americanos da Universidade de Illinois em Chicago e autora de um livro sobre os Panteras Negras.

Jeffrey Haas e seu sócio, Flint Taylor, em frente ao apartamento onde Fred Hampton foi morto/CORTESIA/JEFFREY HAAS

“Uma das razões pelas quais havia tantos comitês dos Panteras Negras nos Estados Unidos e no exterior é porque eles falavam de questões cruciais para muitas pessoas pobres, da classe trabalhadora e de comunidades minoritárias”, afirma Rhodes, ressaltando que o partido surgiu no contexto mais amplo dos movimentos por direitos civis.

“Eles falavam não apenas de violência policial e violência do Estado, mas também sobre desigualdade econômica, em habitação e educação, encarceramento em massa, a Guerra do Vietnã e como homens negros e latinos eram a maioria dos convocados a lutar pelos Estados Unidos.”

O final da década de 1960 foi marcado por tensões políticas, sociais e raciais nos Estados Unidos. Chicago, onde o Departamento de Polícia tinha um histórico de discriminação contra minorias, foi palco de vários episódios violentos.

Em 1968, manifestantes que protestavam contra a Guerra do Vietnã durante a Convenção Nacional Democrata, realizada na cidade, entraram em confronto com a polícia, no que resultaria no julgamento dos Sete de Chicago. Em 1969, três dias de confrontos resultaram em dezenas de policiais feridos e de manifestantes presos.

Rhodes lembra que em Chicago e outras partes do país houve vários confrontos entre os Panteras Negras e a polícia, muitos deles violentos.

“A polícia os perseguia, eles resistiam, armas eram usadas, pessoas eram mortas. Houve violência, mortes trágicas de ambos os lados, tanto de membros dos Panteras Negras quanto da polícia. E a imagem que emergiu é a dos Panteras Negras como sendo violentos”, ressalta Rhodes.

“Mas eu acredito que suas intenções não eram violentas, mas sim inflexíveis. Eles não estavam interessados em assumir uma posição passiva”, observa a historiadora.

Informante e morte
Haas ressalta que Hampton sabia que era alvo da polícia. Era comum que líderes dos Panteras Negras fossem presos. Menos de um ano antes de sua morte, Hampton foi condenado e preso por roubar sorvetes, em uma acusação considerada injusta pelo advogado.

“Acreditamos que na época policiais coagiram o vendedor de sorvetes a identificar Fred”, afirma Haas.

Hampton também estava ganhando mais atenção como líder, considerado uma estrela em ascensão dentro dos Panteras Negras e cogitado para assumir uma posição de liderança nacional no partido.

O terceiro no comando dos Panteras Negras em Chicago era William O’Neal, chefe de segurança do grupo. Em 1966, aos 17 anos, O’Neal havia sido abordado por um agente do FBI depois de ser detido roubando um carro e usando um distintivo falso. Ele recebeu a proposta de evitar a prisão caso se infiltrasse nos Panteras Negras.

Na madrugada de 4 de dezembro de 1969, quando 14 policiais invadiram o apartamento onde Hampton e outros Panteras Negras estavam, eles usaram uma planta do local desenhada por O’Neal, que mostrava onde cada um dormia.

A informação havia sido fornecida pelo FBI ao Departamento de Polícia de Chicago, que invadiu o local sob ordens de Edward Hanrahan, promotor do condado de Cook. A ação durou poucos minutos, nos quais mais de 80 tiros foram disparados. Hampton e outro líder do grupo, Mark Clark, de 22 anos, foram mortos. Quatro Panteras Negras e dois policiais ficaram feridos.

Poucas horas depois da invasão, Hanrahan deu uma entrevista coletiva na qual afirmou que a polícia estava cumprindo um mandado de busca e apreensão procurando por armas ilegais e foi recebida a tiros pelos ocupantes do apartamento, matando Hampton e Clark em autodefesa.

“A reação imediata, violenta e criminal dos ocupantes, ao disparar contra policiais que se identificaram, enfatiza a extrema crueldade do Partido dos Panteras Negras”, disse Hanrahan.

Versões
Haas foi um dos primeiros a falar com os sobreviventes, logo após a invasão. “Entrevistei a noiva de Fred, que estava grávida de oito meses e meio, e ela me disse que a polícia entrou atirando. Ela foi retirada do quarto e dois policiais à paisana entraram. Ela ouviu dois disparos e um deles dizer ‘ele está morto agora'”, relata.

Os membros do grupo que haviam sobrevivido à invasão foram indiciados por tentativa de homicídio. Mas as acusações foram posteriormente descartadas quando testes de balística deixaram claro que a versão da polícia não encaixava com as evidências na cena do crime.

Um grande júri federal concluiu que quase todos os cartuchos e balas encontrados na cena haviam sido disparados por armas da polícia. Somente um disparo havia sido feito pelos ocupantes do apartamento, provavelmente em autodefesa. Hampton havia sido morto em sua cama, enquanto dormia, com dois tiros à queima-roupa.

Hanrahan e 13 policiais acabaram sendo indiciados por obstrução de justiça e conspiração para apresentar falsas evidências, mas foram absolvidos.

Haas passou anos tentando provar a participação do FBI na invasão. Ele defendeu os sobreviventes das acusações criminais e representou as famílias em uma ação civil contra a polícia, o promotor e o FBI. Em 1971, ativistas anti-guerra invadiram um escritório do FBI e encontraram documentos sobre o programa secreto Cointelpro.

Outros documentos revelados posteriormente comprovaram que, apesar de não ter participado diretamente da invasão, o FBI teve papel central na ação, e que Hampton e os Panteras Negras eram alvo do Cointelpro. Um dos documentos era um memorando do FBI citando pagamento de bônus a O’Neal por seu papel.

Em 1982, o Departamento de Justiça, a cidade e o condado concordaram em pagar US$ 1,82 milhão (cerca de R$ 9,77 milhões) aos sobreviventes e familiares das vítimas.

“Em uma ação civil você recebe pagamento por danos, mas geralmente não há admissão de culpa”, observa Haas. “Mas ainda acho que deveria haver um pedido de desculpas da cidade de Chicago e do FBI, e algum tipo de memorial a Hampton.”

Legado
Rhodes diz que a história de Hampton ainda é pouco conhecida, mesmo nos Estados Unidos. “A não ser que você tenha interesse específico nos anos 1960, ou em ativismo negro, ou em violência policial, você provavelmente nunca ouviu o nome de Fred Hampton”, afirma a historiadora.

Partido dos Panteras Negras inspirou movimentos como o Black Lives Matter/ Getty

“Acho que uma das razões pelas quais há atenção (atual) sobre sua vida é que ele simbolizava o melhor daquela era”, afirma Rhodes.

“Nem todos nos Panteras Negras ou no movimento Black Power eram pessoas ideais. Havia erros, havia pessoas que cometiam crimes. Mas Hampton era abnegado, ele realmente dedicou sua vida a esse trabalho.”

Rhodes observa que os Panteras Negras costumam servir de inspiração para movimentos sociais atuais, como o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam). “Eles têm táticas diferentes, mas muitos objetivos semelhantes”, diz, lembrando que a violência policial e o racismo ainda são um problema.

Haas também vê semelhanças entre a luta de ativistas como Hampton e o momento atual. No ano passado, os Estados Unidos registraram enormes protestos contra a violência policial e o racismo, desencadeados pela morte de George Floyd, um homem negro morto sob custódia de um policial branco.

“Os anos 1960 foram uma época revolucionária. O mundo estava em convulsão e as pessoas estavam lutando por liberdade. Acho que de várias maneiras isso influenciou o que está acontecendo hoje”, afirma Haas.

“E Fred é um símbolo disso, uma memória disso. Por isso acho que é tão importante saber quem ele era e o que ele fez.”

Fonte: Por Alessandra Corrêa, da BBC

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