Quem ri do racismo?

serrote 33 traz a seção especial “9 perguntas para o Brasil de hoje”, em que intelectuais como Milton Hatoum, Maria Rita Kehl e Luiz Eduardo Soares refletem sobre questões cruciais no país, da proliferação da violência ao silêncio dos escritores diante do autoritarismo

Por ADILSON JOSÉ MOREIRA, da Revista Serrote 

Neste ensaio, parte da seção, o advogado e escritor Adilson José Moreira, autor do livro Racismo recreativo, reflete sobre o humor racista e a naturalização da violência racial no Brasil

Adilson José Moreira é um dos convidados do lançamento da serrote 33 no dia 5/12, às 19h, no IMS Paulista. Ele conversa com a pesquisadora Juliana Borges, autora do ensaio “A quem interessa lotar as prisões?”, também incluído nesta edição

ADILSON JOSÉ MOREIRA (Foto: André Zanardo)

As pessoas raramente esquecem episódios de discriminação, principalmente quando são frequentes. A memória deles nos acompanha por muito tempo, como se nos lembrasse de que não somos vistos como pessoas que merecem o respeito dispensado a todos os indivíduos. Esse sentimento é ainda mais perturbador quando aqueles que praticam esses atos afirmam não ter a intenção de ofender. Eu particularmente me lembro de um desses episódios, porque envolvia o humor racista. Estava na sétima série. A professora tinha distribuído as provas de inglês corrigidas e, mais uma vez, eu tinha recebido a maior nota da sala naquela disciplina. Uma das melhores alunas da turma, que era também a mais bonita, veio me cumprimentar. Um aluno branco interrompeu nossa conversa dizendo que não conseguia entender como um negro com cabelo carrapicho podia tirar uma nota tão alta. A fala foi seguida de uma imensa gargalhada. Fiquei, obviamente, ofendido com o comentário, mas não retruquei. Não foi a primeira vez que presenciei pessoas brancas sendo racistas e depois dizendo que estavam apenas brincando.

Consegui entender esse comportamento muitos anos depois estudando a motivação psicológica do humor. A teoria da superioridade foi uma das primeiras análises sistemáticas desse tema. Segundo seus propositores, a malícia é o elemento central do humor. Rimos daqueles que julgamos inferiores; rimos porque pensamos que eles se colocam em situações ridículas em função dessa suposta inferioridade. Essas construções afirmam a superioridade que um indivíduo sente em relação a membros de outros grupos. Mais do que isso, elas permitem estabelecer um sentimento de identidade com outros membros do grupo dominante, já que as piadas reforçam a ideia de que são superiores. Isso significa então que o humor racista é também estratégico, pois reproduz estereótipos que servem para legitimar estruturas de poder. A fala daquele aluno branco desempenha um papel importante na sua economia psíquica: ao fazer o comentário racista, ele procura afirmar sua identidade racial como um lugar de poder. Ver uma pessoa negra em uma posição de destaque o deixou consternado; ele veio até mim para me lembrar do lugar que a sociedade me destina. O humor racista opera como uma espécie de pedagogia racial: é preciso dizer para nós, negros, que não podemos demandar o mesmo nível de respeitabilidade social dos brancos.

É importante interpretar esse comporta­mento de forma ainda mais profunda. Aquele aluno branco da sétima série fez uso do humor racista para que pudesse obter satisfação psicológica, alcançada pela evocação de estigmas, de compreensões que formam a opinião das pessoas sobre os lugares que membros de determinados grupos sociais podem ocupar na sociedade. O humor racista reafirma imediatamente a ideia de que pessoas brancas têm e sempre terão status cultural privilegiado, produzindo alívio diante de negros que tenham algum tipo de destaque social. Ridicularizar pessoas negras reafirma que, ainda que algumas delas possam alcançar algum sucesso, as instituições sociais sempre desvalorizarão minorias raciais.

O incidente narrado acima não pode ser visto como apenas um comportamento individual e circunstancial. O aluno branco é um agente de reprodução de um sistema de dominação que se manifesta nas relações cotidianas. É nesse plano que as pessoas procuram reproduzir as diferenciações de status cultural para que elas também se traduzam em oportunidades materiais. Aquele aluno branco lançou mão do humor racista não só por satisfação psicológica, mas porque percebeu um pequeno sucesso social de uma pessoa negra como ameaça ao status privilegiado de pessoas brancas; ele interpretou aquilo como uma ameaça pessoal e coletiva. O ambiente escolar é frequentemente um espaço de desqualificação de negros e negras devido a seu papel central no sistema de dominação racial.

Vemos que o humor racista tem uma dinâmica psicológica complexa. Aquela fala racista opera dentro de um contexto bem específico: ela foi uma reação a um elogio feito por uma mulher branca a um homem negro. Esse fato despertou outro sentimento naquele aluno branco: a insegurança sexual. Uma simples demonstração de admiração acadêmica de uma mulher branca por um homem negro significou, portanto, uma ameaça ao tradicional sentimento de posse que homens brancos possuem em relação ao corpo e à mente de mulheres brancas. Ao reproduzirem a ideia de que negros são pessoas sexualmente degradadas, os membros do grupo racial dominante podem afirmar a suposta inferioridade moral de minorias raciais em todas as dimensões da vida social. A ridicularização do meu cabelo naquele contexto tinha o propósito de me desqualificar como aluno e como parceiro sexual aceitável. A degradação sexual serve então para convencer a sociedade de que negros não são atores sociais competentes no espaço público ou privado. Podem, por isso, ser marginalizados, excluídos de oportunidades sociais.

Ainda sobre a questão estética, é importante enfatizar a referência ao meu cabelo porque ela desempenha um papel funda­ mental na lógica do humor racista. Devemos mencionar neste momento a noção de incongruidade. As pessoas não riem motivadas apenas por malícia. Elas riem de algo que contraria expectativas sociais, quando uma fala desafia a lógica do senso comum, quando um fato vai de encontro às nossas concepções de como a sociedade deveria funcionar. A beleza, dentro da nossa cultura, está associada aos traços fenotípicos de pessoas brancas. A presença quase exclusiva delas em todas as produções culturais faz com que se consolidem como referência do nosso senso estético, do que pode ser considerado como agradável e sexualmente atraente. Nessa lógica, traços físicos de minorias raciais são vistos como algo desagradável não apenas por causa da invisibilidade social, mas também em função da associação deles com a inferioridade moral. Aquele aluno branco utilizou essa estratégia com o objetivo de afastar a ideia de que negros possam ter qualquer tipo de respeitabilidade. Seu comportamento procurou afirmar a identidade racial de pessoas brancas como a referência do que pode ser considerado belo, do que pode ser considerado inteligente, do que merece respeito, do que pode ser visto como propriamente humano. O racismo recreativo é um tipo de perversão moral porque ridiculariza a premissa de que negros devam ser considerados como pessoas que merecem ser vistas como iguais.

Ridicularizar meu cabelo significa estigmatizar a identidade de todas as pessoas negras, elemento recorrente no humor racista brasileiro. Não se trata apenas de uma avaliação estética negativa que ocorre, repito, por meio da associação de traços fenotípicos com a suposta inferioridade moral dos membros desse grupo. Aquele aluno branco estava, por­ tanto, lançando mão do humor racista para reproduzir estereótipos. Estereótipos são falsas generalizações sobre membros de um grupo específico; eles têm uma dimensão descritiva e outra prescritiva. A primeira designa supostas características de todos os membros do grupo; a segunda aponta as funções que eles devem ocupar dentro de uma sociedade. Um negro que tira a melhor nota da turma está fora do seu lugar. Aquele aluno branco não podia compreender meu sucesso acadêmico em função das ideias sobre a falta de inteligência de pessoas negras. Vemos, as­ sim, que aquele episódio revela um aspecto importante das interações humanas: os vá­ rios grupos sociais estão sempre competindo por estima e reconhecimento. A posse desse bem desempenha uma função fundamental na vida psíquica das pessoas porque dele de­ pende a construção de uma percepção positiva da identidade individual e coletiva delas. Aquele aluno branco veio competir comigo por apreço social, por ter se sentido diminuí­ do dentro do ambiente escolar e por ter sido supostamente preterido por uma mulher branca. Ao reproduzir o humor racista como um tipo de recreação, ele procurava atacar a reputação coletiva de pessoas negras, o que ocorre em nosso país cotidianamente.

Um sistema de dominação social como o racismo não pode ser mantido sem algum tipo de ação coletiva. Percebi desde a minha infância que muitas pessoas brancas e muitas instituições controladas por pessoas brancas sempre se articulam para proteger brancos acusados de racismo. Não permiti que aquela ofensa fosse interpretada como um ato sem consequências. Relatei o ocorrido ao coordenador e ao diretor da escola. A resposta deles foi de total indiferença; disseram que aquilo não era algo que eu deveria levar à atenção deles porque tinham questões mais sérias para resolver. É claro. A dignidade de pessoas negras não é motivo de preocupação na nossa sociedade. Como eu poderia ser tão tolo a ponto de pensar que mereço respeito, não é mesmo? Comportamentos como esses encorajam pessoas brancas a ofender e a humilhar negros na hora que quiserem e como quiserem porque sabem que nada ocorrerá com elas. Vivemos em uma sociedade que cultiva uma ética do desrespeito – então por que aquelas autoridades se preocupariam com isso?

Alguns dias depois, aquele aluno branco veio mais uma vez fazer comentários racistas, dessa vez se vangloriando pelo fato de que minhas reclamações não resultaram em nenhum tipo de punição. Mas dessa vez eu respondi a seus comentários racistas de outra forma. Olhei para ele com muita calma e perguntei como ele conseguia dormir sabendo que um negro periférico era muito mais inteligente do que ele. Disse que a consciência daquilo devia doer fisicamente e que nenhum remédio resolveria a questão porque eu sempre seria melhor do que ele em todas as situações. Diagnosticar a dinâmica psicológica do seu comportamento teve um efeito emocional profundo naquele indivíduo. Ele tentou me agredir, eu me desviei; ele começou a me xingar, eu tirei outra vez a nota máxima em uma prova e lhe mostrei sem dizer nada. Ele foi tomado por uma fúria sem tamanho e então eu comecei a rir.

Muitas pessoas brancas afirmam que o humor não pode ser considerado racista porque almeja produzir a descontração das pessoas. Essa afirmação tem grandes implicações para o sistema democrático. A narrativa que desenvolvi até aqui demonstra de forma clara que o humor racista é um meio pelo qual pessoas brancas expressam desprezo e ódio por minorias raciais. Mas a cultura democrática está baseada na premissa de que os membros de uma comunidade política devem reconhecer a igualdade de status moral entre todas as pessoas, requisito para a construção de uma sociedade que tem como objetivo principal a promoção do bem comum. A constante circulação de estereótipos desumanizadores impede a construção de uma cultura pública democrática, razão pela qual a violência racial é naturalizada no Brasil. Uma piada se torna racista todas as vezes que ela afronta a expectativa legalmente garantida de que as pessoas devem ser respeitadas. Ela se torna racista porque dissemina estigmas culturais que impedem o gozo do bem público da respeitabilidade social ao comprometer a reputação coletiva dos membros de minorias raciais. Quem ri do racismo está moralmente doente. Quem ri do racismo faz parte de uma sociedade moralmente decadente.

 

Doutor em direito constitucional pela Universidade Harvard, Adilson José Moreira (1974) é advogado e professor da Universidade Mackenzie. É autor de Racismo recreativo (Pólen Livros) e de Pensando como um negro – Ensaio de hermenêutica jurídica (Contracorrente).

 

Leia Também: 

“Pensar como um negro significa defender uma forma específica de interpretar a Constituição”

 

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