Quem tem medo de Simone de Beauvoir?

|O segundo sexo | Clássico da literatura que abriu frentes para discussões e avanços sociais relativos às mulheres celebra 70 anos

Por Camila Holanda, Do O Povo

Ilustração de Simone de Beauvoir, mulher branca, vestindo camiseta branca e lenço colorido no pescoço.
(Foto: Imagem retirada do site O Povo)

Você já parou para pensar sobre o que é ser mulher? Em 1949, uma francesa impactou a sociedade quando resolveu escrever sobre isto. Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir – ou apenas Simone de Beauvoir – publicou capítulos de seu Le Deuxième Sexe (traduzido como O Segundo Sexo) na revista Tempos Modernos (fundada por ela e seu companheiro Jean Paul-Sartre) e logo os textos foram compilados em um livro. No Brasil, a obra ganhou dois volumes: Fatos e Mitos e A Experiência Vivida. Neles, a escritora desconstrói muito do que se pensava (e ainda se pensa) sobre a mulher – da biologia, passando pela psicanálise de Sigmund Freud e chegando ao materialismo histórico. Simone é cirúrgica.

A escritora construiu a tese de que estes estudos deterministas não conseguem justificar a opressão histórica sofrida por mulheres. A filósofa traz também o conceito do “outro”, expondo que a relação que os homens mantêm com as mulheres é de submissão e dominação – a mulher estaria sempre sendo objetificada e em segundo plano. Neste 2019, O Segundo Sexo completa 70 anos. São sete décadas em que a obra ecoa, abrindo frentes de discussões, estudos e incômodos.

“A fêmea é uma mulher na medida em que se sente como tal (…). Não é a natureza que define a mulher: esta é que se define retomando a natureza em sua afetividade”, escreveu Simone. Foi expondo este pensamento que autora cunhou a memorável frase: “não se nasce mulher, torna-se mulher”, contrariando quem defende, a partir da biologia, que as pessoas só podem ser definidas pelo órgão genital com o qual vêm ao mundo. Assim, Simone abriu, inclusive, caminhos para os estudos de gênero, que iniciariam décadas depois, nos anos 1970.

Nascida em 9 de janeiro de 1908, Simone era licenciada em filosofia pela Universidade de Sorbonne, em Paris. O Segundo Sexo é o seu livro mais aclamado, mas há outras obras importantes em sua trajetória, como Memórias de uma moça bem-comportada, A Força da Idade, A Força das Coisas e A velhice. Além de ensaios, a escritora dedicou-se ainda a romances e peças teatrais.

Anna Érika Ferreira, coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas do IFCE (Neabi – campus Fortaleza) considera que O Segundo Sexo é uma das obras fundamentais para pensar o feminismo. “O Segundo Sexo traz em si pautas de vanguarda quando faz questionamentos como ‘o que é ser mulher’?, quando indica a afirmação de não neutralidade epistemológica diante dessa pergunta, levando o leitor a refletir sobre a distinção entre dois tipos de alteridade: aquela entre os iguais e uma outra entre os diferentes dentro de uma perspectiva dialógica. Essa questão é emblemática, pois nos leva a um local de busca de compreensão. É muito forte!”, constata. Esta compreensão de ser mulher, continua Erika, impactou e influenciou o feminismo, que não é um movimento homogêneo. “Acho importante, utilizar a analogia de autores como Marsha P. Johnson, Joseph Ratanski e Sylvia Rivera, ativistas da luta trans nos EUA, que afirmaram que o feminismo se movimenta em ondas e surge após muitas violações de direitos”, resgata. Vale lembrar que Simone de Beauvoir, à época em que lançou O Segundo Sexo ainda não se reconhecia como feminista, o que só acontece por volta dos anos 1960.

Mesmo escrito lá em 1949, O Segundo Sexo, dentro de suas limitações temporais, é um marco. A escritora transfeminista Helena Vieira avalia que apesar de não articular uma noção de gênero, a obra aponta para as construções que vão permitir que se fale sobre um feminismo interseccional, uma vez que Simone entende a mulher como algo construído. “As questões colocadas no livro não estão ultrapassadas”, demarca. “Elas são historicamente delimitadas, mas são importantes, principalmente, quando a gente está hoje enfrentando tentativas de renaturalização do gênero”, analisa Helena.

Hoje, 70 anos depois, o livro segue atual e importante para discussões sociais, apesar de não dar conta das demandas contemporâneas, como de pessoas trans, LBGTTQIs, mulheres indígenas e outros. “Não existe sentido em dizer: esse livro deveria dar conta dessas demandas! Não, porque era um livro publicado em um tempo em que essas demandas não estavam postas”, reflete a escritora.

“Acho fundamental para que a gente consiga pensar uma localização social das mulheres através de marcadores sociais da diferença, como racialidade, etnicidade, posição geográfica. Todas essas posicionalidades que se imbricam no gênero foram fundamentais para entender que era uma relação de poder. Que a relação homem-mulher era uma relação de poder. Acho que isso foi fundamental para que hoje a gente consiga tratar de outras pautas no feminismo”, atualiza. Simone morreu há 33 anos, em 1986, mas sua voz segue fundamental para que possamos avançar em diversas questões sociais, indo além das relacionadas às mulheres. O pensamento da escritora e filósofa incomoda também, e este incômodo é importante.

A malcriada filosofia da subversão

Quando O Segundo Sexo foi lançado em 1949, já era esperado com ansiedade. Nos anos de escrita, a autora compartilhara alguns de seus capítulos na revista Tempos Modernos. Era notícia: Simone de Beauvoir estava escrevendo um ensaio que incendiaria o país. O livro foi incluído no Index da Igreja Católica, repudiado por conservadores e pela esquerda marxista. Seu potencial explosivo se deve a uma característica: ele assenta um projeto teórico que é simultaneamente subversivo e propositivo.

Primeiro, Beauvoir desconstrói os discursos tradicionais que explicam a feminilidade com base em uma essência inevitável e natural. Seu argumento confronta teses da biologia, da medicina, da psicanálise, da religião e do marxismo para propor, como alternativa e com originalidade, a tese culturalista: a condição feminina é uma construção que se desenvolve coletivamente, a partir da transmissão simbólica de práticas, valores e instituições pela educação e pela política.

Por isso, não se nasce mulher, torna-se mulher, num aprendizado compartilhado que se transmite por gerações. O que O Segundo Sexo ofereceu às mulheres foi a percepção de sua condição histórica, abrindo o flanco para questionamento das práticas que enclausuraram a mulher em um lugar social, o de mãe e esposa. Seu esforço analítico foi notável porque inaugurou uma reflexão feminista transformada por novas categorias de análise. Setenta anos se passaram. A força intelectual da obra, seu brilho literário e sua capacidade de incendiar consciências permanecem mais vivos que nunca.

Estante

A editora Nova Fronteira anunciou na semana passada uma edição comemorativa de O Segundo Sexo. Além dos dois volumes que compõem a obra, a caixa traz um livreto com análises atuais das ideias da escritora

 

 

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