Saudar o sol faz parte da rotina de Maria Júlia Coutinho, 37, e não é hábito adquirido depois que ela passou a entrar na casa de milhões de brasileiros informando a previsão do tempo.
por Lígia Mesquita no Folha
Há dez anos a jornalista não passa um dia sem exercitar a série de posturas da ioga, prática que adotou quando ainda era estudante de pedagogia na USP.
Sim, a moça do tempo do “Jornal Nacional” (Globo), o telejornal de maior audiência do país, já quis ser professora. E chegou a lecionar por dois anos, para crianças, em uma escola municipal de São Bernardo do Campo.
“Cursei magistério e me decidi pela pedagogia. Mas, antes do vestibular, fiz um teste vocacional e deu jornalismo. Prestei as duas opções e passei”, lembra Maria Júlia. O resultado do teste não foi uma surpresa para quem, na infância, brincava de apresentadora do “JN”.
De família de classe média baixa paulistana, sua escolha se deu primeiro pelo bolso: trancou a faculdade privada de jornalismo (Cásper Líbero) e optou pela gratuita, de pedagogia, e a carreira recém-iniciada no magistério. “Só pensei em garantir o salário.”
No ano seguinte, conciliou as duas graduações e se “descobriu” no jornalismo. Pediu exoneração do trabalho e largou a pedagogia. “Não tinha traquejo, jogo de cintura em sala de aula. Mas a experiência me ensinou a ser didática.”
Maria Júlia viveu com os pais até o último ano da faculdade em uma casa que eles construíram na Vila Matilde, zona leste paulistana. Hoje, mora com o marido, o publicitário Agostinho Moura, no Campo Belo, zona sul da cidade.
Fotos – Cassia Sabatini
Símbolo da nova informalidade do telejornalismo na TV aberta, Maju Coutinho conta como conquistou seu espaço.
Professores da rede pública, seus pais se sacrificaram, nas suas palavras, para que ela e o irmão mais velho tivessem um aprendizado de qualidade em escolas pagas. “Meus pais sempre falaram: ‘Podem te tirar todos seus bens, mas o conhecimento não se tira’.”
Sua avó materna, empregada doméstica, também se dedicou muito para que a mãe de Maju estudasse. “Ela viu que o caminho para a filha avançar era a educação”, diz, com a voz embargada. “Me ensinou a lutar por meus direitos.”
Embora de família católica praticante, Maju estudou o antigo primeiro grau na Escola Brasileira Islâmica, na Vila Carrão. “Minha mãe sempre passava por lá. Um dia entrou, conheceu e sentiu que seríamos felizes ali. E ela tinha razão.”
No colégio, conviveu com o diferente, sendo ela mesma uma criança que destoava das demais. “Havia mais um ou outro negro lá”, recorda. “Tinha amiga prometida para casar, menina de véu. E no Ramadã a gente folgava.”
MARIA E MAJU
Maria Júlia foi batizada assim em homenagem a uma tataravó materna, que todos diziam ser doce e determinada.
Foi no magistério no Anglo Latino, onde ganhou bolsa de estudo, que Maria, como até hoje seus pais a chamam, virou Maju. Na TV, Chico Pinheiro foi quem primeiro a tratou pela alcunha, no “Bom Dia Brasil”. “Reclamaram que era muito informal, e ele falou: se ela não pode ser Maju, tenho que ser Francisco”, lembra a jornalista.
Quando Maria Júlia estreou no “Jornal Nacional”, em abril, houve muitos pedidos, via redes sociais, para o âncora e editor William Bonner —que ela ainda não conhece pessoalmente— a usar o apelido. Concessão feita, Maju se tornava nome conhecido pelo país, e o “JN” passava a ficar menos carrancudo.
Sua chegada ao jornal foi parte essencial desse processo de informalidade, com a meteorologia ganhando linguagem mais coloquial.
A previsão do tempo entrou na vida profissional de Maju em 2013, quando ela voltava das férias e recebeu o convite para ir para o estúdio dos telejornais da Globo em SP. Nos seis anos anteriores, havia trabalhado como repórter.
A vaga no maior canal do país foi conquistada com o clássico e-mail “segue meu currículo”, recebido por uma editora indicada por um amigo.
Na época, Maju trabalhava havia quatro anos na TV Cultura, onde foi repórter e chegou a apresentar algumas vezes o “Jornal da Cultura”.
Há dois anos como “garota do tempo”, com reuniões diárias com meteorologistas, Maria Júlia acha que conseguiu diminuir o preconceito em relação à sua função. “Nos EUA e em outros países é uma editoria valorizada, você aborda turismo, agricultura etc. Aqui, acham que é só se maquiar e falar a temperatura. É um trabalho de reportagem”, diz.
Por ora, ela não pretende trocar o jornalismo pelo entretenimento. Neste ano, especulou-se que Maju poderia apresentar um telejornal ou entrar para o “Fantástico”. “Nunca recebi nenhuma proposta, mas estou aberta a novos desafios.”
Nesta semana, ela participa da Conferência do Clima de Paris (COP-21), a convite da ONU e da Organização Mundial de Meteorologia. A jornalista acompanhará alguns debates.
SEM CHAPA
“Nossa, é outra pessoa. Não sou eu”, ria Maria Júlia, ao ver no computador as imagens feitas para Serafina, na manhã de um sábado de novembro.
Em seu primeiro ensaio de moda, causou-lhe estranhamento, além das roupas estampadas e de grifes estrangeiras, o cabelo, naturalmente encaracolado e sempre solto, preso em um coque.
Orgulhosa das madeixas crespas, Maju confessa ter caído na tentação da chapinha na adolescência por dificuldade de aceitar o cabelo, alvo de piadas na escola. “Meus pais trabalharam muito essa questão, diziam que não tinha nada de errado comigo.”
Os fios deixaram ser retos quando ela se deparou com uma modelo cheia de trancinhas na capa da revista “Raça” e resolveu adotar o visual.
Em julho, Maju voltou a ouvir que seu cabelo servia “para limpar panela” numa série de ataques racistas postados no Facebook do “Jornal Nacional”. A ação ganhou investigação do Ministério Público de SP, que segue no trabalho de identificação dos autores das injúrias.
Se pudesse escolher a punição para essas pessoas, Maju as faria trabalhar por um dia em instituições de combate ao racismo. “Para elas ouvirem relatos de quem sofre preconceito. A coisa mais educativa é conviver com o diferente.” As agressões virtuais não a incomodaram tanto quanto a repercussão do ocorrido. “Enche o saco falar sempre desse assunto.”
O mesmo desconforto foi relatado a ela pela atriz Taís Araújo, outra vítima recente de ataques racistas na internet. As duas saíram para jantar no dia do ensaio para a Serafina, após Maju assistir à performance de Taís e Lázaro Ramos na peça “O Topo da Montanha”.
“A Taís disse que teve o mesmo sentimento que eu. Aquilo lá, sinceramente, não foi algo que me tocou, porque desde que você se entende por negro aqui, sabe que tem preconceito, ouve na escola”, afirma. “Apesar de achar um absurdo, não pega mais na alma de quem já leva há tanto tempo essas porradas.”
As ofensas proferidas contra a jornalista geraram uma forte campanha de apoio nas redes sociais, com o nome e a hashtag #SomosTodosMaju.
Houve quem criticasse a mobilização, caso do rapper Parteum, que fez um texto lembrando outros casos de racismo, ocorridos com pessoas pobres e não famosas, que não ganharam repercussão. Ele terminava dizendo “Vocês não são todos Maju”.
Ela não concorda com essa percepção. “É claro que sei que eu e a menina da periferia devemos ter o mesmo tratamento. Mas quando uma pessoa pública é alvo de ataques, isso serve de mobilização. A família de uma vítima de preconceito pode falar: ‘Não é só com você’. A menina da periferia vai ver que tem direito tanto quanto eu, a Taís…”
Para a jornalista, os negros no Brasil precisam cada vez mais tornarem-se visíveis para combater o racismo. “À medida que a gente não é mais invisível, que não faça só papéis de empregada [na dramaturgia], que faça a diferença em diversas áreas, as pessoas vão se acostumando”, afirma.
Nessa lógica da visibilidade, a televisão, diz, precisa ter maior presença negra. “Ainda há muitos como câmeras, faxineiras. Precisamos ampliar essa participação”, diz a jornalista, que não é integrante de movimentos raciais.
“Ser ativista é algo sério, exige dedicação”, fala. “Acho que já levanto bandeira porque estou no ar no ‘JN’. Estou lá numa posição que não é servindo cafezinho, de igual para igual.”