Texto escrito especialmente para o portal do Instituto Paulo Freire.
Por Jarid Arraes, na Revista Fórum
Seja na mídia, no entretenimento ou até no conhecimento disseminado nas escolas, as mulheres negras permanecem preteridas e afastadas do lugar de reconhecimento. Enquanto crianças e adolescentes, não aprendemos nas aulas de história que existiram mulheres negras líderes quilombolas ou estrategistas que organizavam revoltas e ações contra a escravidão; pelo contrário, ainda hoje se repete a ideia de que as pessoas negras não reagiam contra o regime escravista.
Somado ao machismo, o esquecimento é o legado destinado para as diversas mulheres e quilombolas, símbolos de resistência e luta da nossa história, como Dandara dos Palmares, Tereza de Benguela e Luísa Mahin.
Costumo dizer que se eu tivesse conhecido Dandara dos Palmares na escola, muitas coisas seriam diferentes na minha vida. Somente na idade adulta, com esforço e dedicação da minha própria parte, tive acesso a leituras e discussões que me mostraram o outro lado da história – aquela que não é contada por quem “venceu” e detém o domínio, mas sim por quem resistiu e lutou contra a subjugação. Saber que havia mulheres negras que lideraram batalhas e foram ícones para seu povo foi algo ao mesmo tempo transformador e reparador – e essa reparação pode ser tanto subjetiva quanto social.
No entanto, vale ressaltar que eu e outras mulheres negras tivemos que trilhar um caminho de pesquisa e busca além das salas de aula e dos materiais de entretenimento. Nas redes de colaboração entre mulheres negras, conheci a história de Dandara dos Palmares, mas me deparei com uma realidade que desdenhava de sua existência. Por isso, por haver quem dissesse que Dandara “não passava de uma lenda”, senti a necessidade de escrever um livro que contasse seus feitos. Numa tentativa de lutar contra o esquecimento que lhe é direcionado, criei “As Lendas de Dandara“. No entanto, uma publicação independente encontra muitos obstáculos e não consegue chegar a todas as pessoas que necessitam conhecer mulheres como ela e como tantas outras, mulheres essas que trariam para nosso panorama sociocultural um rompimento na lógica do racismo e da desvalorização das mulheres negras.
O racismo tem estruturas fortes que vêm se perpetuando há séculos e geram consequências gravíssimas na nossa sociedade. A desvalorização da memória e das realizações afro-brasileiras são apenas a raiz de um problema que se ramifica; o resultado inclui a objetificação das mulheres negras, a desigualdade entre homens e mulheres e também a desigualdade entre mulheres brancas e negras, uma vez que as negras aparecem como população mais vitimada em todas as estatísticas, mesmo aquelas que apontam a opressão e a violência contra a mulher.
Combater esse quadro é um desafio árduo, pois ainda vivemos em uma cultura que se recusa a falar sobre o racismo e a misoginia, muitas vezes rejeitando o exercício do debate e recorrendo a clichês e equívocos, como aqueles que tentam vender a ideia de uma democracia racial inexistente no Brasil. No campo da educação, nas escolas e universidades, essas mentiras também continuam a ser contadas como verdades e, assim, nossa cultura vai se construindo cada vez mais sobre a desvalorização e inferiorização da população negra.
O fato de vivermos toda nossa juventude sem que tenhamos acesso à história afro-brasileira, contada sob a perspectiva da própria população negra, continua sendo um fator crucial para a manutenção do racismo. Por essa razão, falar sobre lideranças negras na nossa história é algo que ainda causa muito choque, tornando-se um fator de diferença tremenda e com um enorme potencial de transformação. As histórias de mulheres como Dandara dos Palmares trazem à tona as contribuições afro-brasileiras para nosso país e para a humanidade, além de servirem como uma reparação profunda de referenciais e representação do que significa ser negro no Brasil.
Falta aos jovens brasileiros o acesso a histórias de mulheres e homens negros, representantes da luta e da resistência contra a opressão, em quem possam se reconhecer e inspirar. Embora o mês de novembro, mês da Consciência Negra, tenha ainda um importante papel a desempenhar na celebração das grandes lideranças históricas negras e na valorização da luta contra as injustiças sociais históricas tão presentes na atualidade, precisamos praticar o esforço constante, diário e distribuído em todos os meses do ano. Somente assim a educação poderá cumprir seu papel de quebrar estigmas sociais e possibilitar uma sociedade livre do racismo e da misoginia.
No mês da Consciência Negra, precisamos provocar a reflexão e o desconforto diante do racismo. Que consigamos romper o lugar comum e cômodo que repete mentiras sobre o que é ser negro no Brasil e que levemos esse desconforto adiante, muito além desses trinta dias. Assim, promoveremos a constante oportunidade da humanização.