Racismo de superfície e de profundidade

por Juremir Machado da Silva

O que seria um racismo de profundidade em relação aos negros? Não sentar ao lado de um negro? Não aceitar o casamento de um filho com um negro? Não ter amigos negros? Considerar os negros como seres inferiores? Tenho a impressão, até a mesmo a convicção, de que a moça que levou o Grêmio a ser excluído da Copa do Brasil  não é racista dessa maneira. Teve um comportamento racista de superfície, caso essa expressão possa ter algum sentido sem encobrir ou justificar preconceitos hediondos. Gritou o que gritam, no embalo, pessoas que podem não se sentir racistas e até repudiar esse racismo, digamos, de profundidade. Mas será que o racismo de superfície praticado por indivíduos não é sintoma de um racismo de profundidade entranhado na sociedade e que vem à tona em manifestações aparentemente sem  maior importância ou praticadas, acima de tudo, para provocar um adversário num jogo, um rival, um inimigo virtual e simbólico na vertigem da paixão?

A moça da confusão, maior de idade, pode não ter tido intenções profundamente racistas, mas, ao proferir injúria racial, praticou um ato de teor racista de cuja inadequação deveria ter plena consciência. No popular, pisou na bola.

Acontece que mesmo esse racismo possivelmente de superfície fere em profundidade aquele a quem atinge.

O ser ofendido não pode se dar o luxo de passar a vida dizendo: é só uma brincadeira. Não foi por mal. Há muito mal, mesmo que não seja o mal absoluto do racismo de profundidade, nessas manifestações que atualizam a barbárie do preconceito.

Há mal nesses comportamentos que mostram possíveis contradições de pessoas: racistas num jogo de futebol, contra o racismo no resto do tempo. Será assim mesmo? Será possível uma fratura tão grande? Em algum grau, é  plausível.

Eu entendo os torcedores do Grêmio que dizem: acontece em todo lugar. Por que só o Grêmio foi punido?

Porque transbordou. O imaginário mudou. A sinalização estava clara.

Evidentemente que o Grêmio não é racista. Obviamente que a maioria da torcida do Grêmio não é racista. Mas, apesar dos alertas, o clube não tomou providências para coibir antes o racismo de superfície que emergia volta e meia.

Depois do jogo contra o Santos, o Grêmio agiu corretamente. Era tarde. Racionalizar não resolve.  Imaginar que há um complô nacional contra o Grêmio ou contra o Rio Grande do Sul é bobagem. Resumir às críticas ao ódio dos colorados é um exagero, embora colorados possam estar sendo hipócritas ou tirando uma casquinha. Há sempre um ponto de virada. O imaginário é uma infiltração que produz um novo acúmulo até resultar num transbordamento. Foi o que aconteceu. Se um dia foi “tolerado” usar a palavra macaco, se os torcedores do Internacional com humor incorporaram o termo, hoje não dá mais.

Outras expressões, como “negro fedido”, jamais deixaram de ser o que são: racismo.

O episódio com o goleiro santistas Aranha foi a famosa gota de água.

Era uma explosão anunciada.

Como costuma acontecer nesse tipo de mutação, não se quis enxergar o que estava vindo.

Preferiu-se simplificar em nome de uma falsa complexidade: todo mundo faz, quem não faz que atire a primeira pedra, é só brincadeira, não há intenção de fazer mal, sempre foi assim, faz parte do nosso jogo, não venham com hipocrisia, que chatice esse politicamente correto, parem com essa patrulha, ninguém tem moral para condenar, etc.

Esse álibi superficial sempre desconsiderou o sofrimento dos atingidos.

A conta chegou. Espera-se que seja realmente um ponto de partida e que chegue para todos que praticarem os mesmos atos.

O combate ao preconceito é mais importante do que o amor ou o ódio (algo bizarro) a um clube de futebol.

A rejeição ao racismo de profundidade passa pela guerra ao racismo de superfície.

Em alguns casos, o racismo de superfície é a ponta do iceberg do racismo de profundidade. Em outros, é o que dele sobrou. Em qualquer situação, é abominável, inaceitável e, no imaginário atual, uma chaga a ser eliminada.

O mundo está mais complexo. Não aceita mais certas simplicidades.

De superfície ou de profundidade, racismo é racismo.

Fonte: Correio do Povo

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