Racismo estrutural: a banalização da expressão nas redes sociais

A ideia de liberdade é inspiradora. Mas o que isso significa? Se você é livre em um sentido político, mas não tem comida, o que é isso? A liberdade de morrer de fome?
                                                                              − Angela Davis

Os debates nas redes sociais sobre política, esportes, músicas, reality shows, entre outros assuntos, têm sido bastante calorosos e um campo abundante para o envolvimento das questões raciais. Em partes é muito interessante, já que nos deparamos com inúmeros pontos de vista que podem ajudar a formar nossas próprias opiniões. 

Nesses últimos tempos, o racismo tem ganhado maior dimensão, escancarando a influência no modo de vida social. Por exemplo, a visibilidade das ocorrências de manifestações racistas nos estádios de futebol. Na música e no cinema observamos artistas negros sendo objetificados e hipersexualizados. Em programas de TV, estigmas e estereótipos continuam nos atingindo. Nos espaços de poder, a ausência de pessoas negras segue demonstrando a farsa da “democracia racial”. Portanto, existem diversas questões que demandam de reflexões profundas para combater a normalização e reprodução das práticas racistas. No entanto, percebemos a banalização da expressão racismo estrutural em vários contextos. Qualquer notícia de casos de ofensa a uma pessoa negra, ou comentário racista dentro de um reality show, é o suficiente para essa expressão ser colocada em exaustão.

Não tenho dúvidas sobre a importância de discutirmos o racismo como elemento estrutural e estruturante na sociedade. Se não fosse a sua existência não teríamos milhares de pessoas negras sobrevivendo na marginalização e com chances mínimas de superação. Mas o racismo estrutural carrega demasiada complexidade para ser aplicado de maneira simplificada. A cientista política Iris Marion Young elaborou uma metáfora bastante didática acerca dessa expressão 

Se alguém pensa em racismo examinando apenas um fio da gaiola ou apenas uma forma de desvantagem, é difícil entender como e por que o pássaro está preso.  Somente um grande número de fios dispostos de uma maneira específica e conectados um ao outro serve para envolver o pássaro e garantir que ele não possa escapar.

Dessa metáfora, entendemos que o racismo estrutural contempla diversos mecanismos interligados, um arcabouço de obstáculos que mantém as cidadanias mutiladas, como diria o professor Milton Santos. Nesse sentido, a superação de qualquer um desses mecanismos não possibilita resolver a totalidade do problema racial. Devido a essa dimensão, a aplicação da expressão não pode ser resumida na ordem individual ou moral. O jurista e filósofo, Silvio Almeida, esclarece

 
Quando a gente fala de racismo estrutural, o adjetivo estrutural indica não ser apenas o resultado de atos voluntários, que se limitam ao plano individual. Ele é, na verdade, um processo. A gente só consegue entender como a raça configura as relações de poder em nível institucional e político se entendermos a força que o racismo tem na nossa vida. 

Diante desses ângulos, devemos atuar com responsabilidade nos debates públicos, escaparmos do senso comum e ampliarmos o espectro na análise do problema. Não podemos sintetizar as análises jogando conceitos como se a raiz do problema estivesse evidente. Isso dificulta qualquer construção estratégica para o encaminhamento do combate ao racismo, seja dentro dos movimentos e organizações, seja por aqueles que de alguma maneira estão enfrentando a opressão racial. De nada adiantará discussões irreflexivas, como se as expressões que leem as nuances dos problemas sociais conseguirão mudar o que está colocado em nossas vidas. A luta contra a opressão racial é um ato político, e, como tal, deve acontecer radicalmente sem ceder ao espetáculo que se tornou as redes sociais.

 

REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS

 

ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2018.

 

SANTOS, Milton. Cidadanias mutiladas. In: LERNER, Julio (Ed.). O preconceito. São Paulo: IMESP, 1996/1997, p. 133-144.

 


¹- O racismo estrutural no cotidiano do país, segundo este autor  Disponível em: < https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2019/02/12/O-racismo-estrutural-no-cotidiano-do-pa%C3%ADs-segundo-este-autor>. Acesso em: 22 abr.2020

 


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

+ sobre o tema

Negros são maioria dos mortos em ações policiais em seis estados

A cada quatro horas uma pessoa negra é morta...

O algoz não vai ter mais razão

Há um desespero cômico naqueles que não falam mais...

para lembrar

Discriminação existe, diz mãe do primeiro aluno com Down da UFG

Apaixonado por mapas, Kallil decidiu fazer o vestibular para...

John Galliano foi considerado culpado mas não vai para a prisão

John Galliano, de 50 anos, foi despedido do posto...

Ele Não Porque Eu Sou Negro

Qualquer um que se preste a ler e estudar,...
spot_imgspot_img

X se assemelha a cidade sem lei

Faz poucos dias, o IBGE apresentou ao país as projeções atualizadas da população. Território inteiro, grandes regiões, todas as 27 unidades da Federação, 100% dos 5.570...

‘Gay não opina aqui’: estudante de 14 anos denuncia que sofreu injúria racial e homofobia de colegas de escola na Zona Sul do Rio

Um estudante de 14 anos foi alvo de injúria racial e homofobia por parte de colegas de turma do Colégio pH, no campus de...

Abordagens por reconhecimento facial têm 10% de falsos positivos, diz PM na Alerj

As abordagens conduzidas pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) com o uso do sistema de reconhecimento por biometria facial tiveram uma taxa de falsos...
-+=