Direito à memória

Eunice Farah, 77 anos, era uma foliã apaixonada e pulou o último carnaval no Clube Ipiranga com filhos e netos. Erika Regina viveu 39 anos e se transformava na melhor amiga de infância de qualquer um, em cinco minutos. Ricardo Maeda, 44, ia ser um pai completo, mas não teve tempo. Fernanda Caiuby, aos 64 anos, pintava na aquarela a imaginação dos seus filhos. Manoel Chaves era o Belo. Tinha 86 anos e assim era conhecido porque lá na Bahia, dizem, era o mais bonito da sua vila. Todos morreram vítimas da Covid-19. Todos foram sepultados sem ritos ou despedidas.

O olhar sensível do artista Edson Pavoni, inconformado em ver pessoas transformadas em números, deu voz e alma aos que partiram. Em uma obra coletiva, com participação de voluntários, o memorial virtual “Inumeráveis” ( https://inumeraveis.com.br) entrou no ar na quinta-feira passada. Nas lápides intangíveis, que não param de crescer, nomes e histórias são eternizados. Uma maneira comovente e delicada de perpetuar a memória, e de permitir a ritualização das perdas e a elaboração dos lutos, sem os quais não somos humanos. Não há futuro sem compreensão do passado. Somos um acumulado de vidas e histórias dos que nos precederam. Sem nomes, sem memória, vidas são descartáveis. Daí porque precisamos lembrar. Daí porque não podemos esquecer.

Nunca as informações foram tão importantes para sair de uma crise. Isolados, assistimos das nossas janelas e das nossas telas ao avanço da pandemia. O mundo é, neste momento, do tamanho daquilo que vemos e das notícias que chegam até nós. Nesse contexto, é compreensível constatar a resistência de uma minoria, no entendimento da gravidade do cenário. Confinada em redes sociais e em grupos de WhatsApp, hipnotizada por fake news, narrativas delirantes e discursos messiânicos, despreza a verdade, a ciência e a história. Ignorar a memória, no passado, nos trouxe até aqui, condescendentes com elogios a torturadores e a manifestações que clamam pela volta do AI-5. No presente, a desconexão com a realidade exibe o desfile de carreatas fúnebres, obrigando os mais pobres a irem para as ruas, como se fosse aceitável a covardia de correr risco com a vida dos outros.

Ao reproduzir e alimentar o discurso negacionista, estimulando o fim do isolamento e minimizando os impactos da pandemia, provocando conflitos políticos e institucionais desnecessários, mesmo diante de mais de 6.000 mortos, o governo revela desprezo e falta de empatia pelo sofrimento e pela angústia de toda a sociedade. Ao tentar limitar o acesso aos dados, por meio de Medida Provisória repelida pelo STF, tenta impedir que os cidadãos se organizem democraticamente. Mortes por descaso não são efeitos naturais de uma pandemia, e ao poder público não é dado o direito de ignorar a realidade, quando ela se impõe. A desinformação deliberada e a omissão das autoridades não conseguem sepultar a realidade. Os corpos são concretos, como é concreta a dor.

O contágio aumenta, na medida em que aumenta a flexibilização do confinamento. Transformar mortos em estatísticas é uma maneira de desumanizar as perdas e anestesiar a tristeza, estratégia conveniente para a política do ódio e da crueldade.

Felizmente, a empatia que falta ao poder público sobra na sociedade. A omissão quanto a orientações seguras faz com que cada qual, no seu quarteirão, organize estratégias de cooperação possíveis para enfrentar a crise sanitária, que caminha para seus piores dias.

Tudo na vida tem um ciclo e esse também vai terminar. A memória que formos capazes de armazenar durante o confinamento determinará a maneira como caminharemos no futuro. O que desejamos perpetuar? O nome e a história dos mortos ou o desprezo para com a vida? A rede de solidariedade ou as provocações e confrontos? O sadismo em forma de publicações nas redes, ou as lives afetivas da luminosa cantora Teresa Cristina?

Que nossa humanidade não seja contaminada pela irracionalidade, e que saiamos dessa experiência irmanados em histórias e verdades, com um memorial rico em afeto e fraternidade.

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