Racismo: liberdade e o confronto de ideias


A ideia de liberdade é inspiradora. Mas o que isso significa? Se você é livre em um sentido político, mas não tem comida, o que é isso? A liberdade de morrer de fome?

           – Angela Davis

Existem pessoas brancas desonestas quando o assunto é racismo. Ao defenderem os privilégios, argumentam que a responsabilidade pelo destino dos indivíduos depende somente deles mesmos; mas, o discurso é inverdadeiro em sociedades cujos marcadores sociais (raça, classe, gênero, etc.) são determinantes nas relações. Esse complexo no tecido social constrói uma pluralidade de desafios, e, em se tratando das questões raciais, o sociólogo Octavio Ianni (2004, p. 21) explica que as mesmas são exteriorizadas “de forma particularmente evidente, nuançada e estridente, como funciona a fábrica da sociedade, compreendendo identidade e alteridade, diversidade e desigualdade, cooperação e hierarquização, dominação e alienação“.

É estrutural e estruturante as mulheres não receberem tratamento igual aos homens, os pobres não receberem tratamento igual aos ricos, os negros não receberem tratamento igual aos brancos. Nesse sentido, a luta dos desprivilegiados é destruir esse paradigma para alcançar uma sociedade igualitária, independente do marcador social em que as pessoas pertençam. Porém, enquanto isso não acontece, o esforço de cada pessoa é somente um pequeno imperativo no tecido social. 

Uma das hipóteses para o emprego do discurso de responsabilidade individual, é conseguir a interdição da obscenidade do racismo e evitar o confronto com a própria consciência, pois, caso contrário, incorre a uma espécie de dissonância cognitiva. Podemos imaginar a sensação incômoda de quem passou a vida inteira acreditando ser uma pessoa justa, defensora da meritocracia, realizada profissionalmente, e de repente ser confrontada com críticas ao privilégio branco, e exposta às estatísticas que escancaram o racismo contra os negros. Ou seja, o indivíduo branco entra num estado de constrangimento ao ser informado que as conquistas não são explicadas pelo talento, inteligência ou esforço; e que o conceito de justiça é incompleto quando não contempla as questões raciais. O afro-americano Ajamu Baraka (2013), citando o psicanalista Frantz Fanon, esclarece:

Por vezes, as pessoas detêm uma crença basilar muito forte. Perante provas que colocam em causa esse princípio, essas novas provas não podem ser aceites. Tal criaria um sentimento extremamente desconfortável, designado de dissonância cognitiva. E, uma vez que a proteção desse princípio assume uma enorme relevância, eles irão racionalizar, ignorar e até negar qualquer coisa que não caiba nessa crença.¹ 

E para escapar desse sentimento desconfortável, os brancos defendem − cegamente − a ideia de liberdade como parâmetro que possibilita aos negros conseguirem melhores condições de vida. Dissociam as hierarquias e arranjos sociais decorrentes do período colonial, e as questões que deveriam ser consideradas uma opressão sistemática, contra os negros, são vistas como desvios de conduta de algumas pessoas brancas. No entanto, é inadmissível a concepção de emancipação quando as subjetividades são ignoradas, as nossas mazelas não são acidentes, mas resultados de ações e pensamentos racistas. Em virtude disso, nas discussões com os desonestos, geralmente elaboro questionamentos objetivando provocá-los, e nunca aceito respostas que não seja o reconhecimento do racismo como impeditivo da liberdade dos negros:

− Que liberdade é essa em que as maiores vítimas de violência obstétrica são as mulheres negras?

− Que liberdade é essa em que as maiores vítimas de encarceramento e assassinato são pessoas negras?

− Que liberdade é essa em que a população mais pobre e miserável é negra?
− Que liberdade é essa em que a maioria das ocupações com baixa remuneração é ocupada por negros?

− Que liberdade é essa em que a maioria dos moradores nos bairros de alta vulnerabilidade social é negra?

− Que liberdade é essa em que as religiões de matriz africana são as que mais sofrem crimes de intolerância religiosa?

− Que liberdade é essa em que os negros são perseguidos nos comércios, e correm o risco de não saírem vivos desses ambientes?

− Quem liberdade é essa em que os negros temem encontrar policiais nas ruas, principalmente nos horários noturnos?

− Que liberdade é essa em que os negros são questionados no mercado de trabalho, correndo o risco de perderem oportunidades profissionais, por usarem penteados afros e vestimentas que remetem a cultura africana e afro-brasileira?

Por essas inquietações, concordo com a reflexão atemporal do líder contra a opressão racial nos EUA, o afro-americano Malcolm X (1963) “Estamos presos em um ciclo vicioso de morte econômica, intelectual, social e política. Empregos inferiores, habitação inferior, educação inferior que, por sua vez, leva a empregos inferiores. Passamos a vida inteira neste círculo vicioso.” (tradução nossa). Sejamos honestos!


 ¹Egito: réquiem para uma revolução que nunca existiu. Disponível em: <https://passapalavra.info/2013/08/82804/> . Acesso em: 22 jul. 21

Referências Bibliográficas

FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

IANNI, Octavio. Dialética das relações raciais. In: Revista de Estudos Avançados, vol.18, n.50, p. 21-30, 2004.

PORTAL BLACKPAST. (1963). Malcom X, Racial Separation. Disponível em: <https://www.blackpast.org/african-american-history/speeches-african-american-history 

/1963-malcolm-x-racial-separation/>. Acesso em: 22 jul. 21


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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