Racismo no futebol cresce; clubes engatinham na orientação a jogadores

Casos de injúria nos estádios do país bateram recorde em 2019

Por Rafael Oliveira, do O Globo

Quando estava no Flu, Yony foi alvo de um dos 59 casos de injúria de 2019 (Foto: Alexandre Cassiano)

A discussão nas redes sociais cresceu. Times, técnicos e jogadores passaram a se posicionar. Mas o racismo ainda é tabu. Ao mesmo tempo que aprenderam a importância de conscientizar suas torcidas, são poucos os clubes que realizaram alguma ação voltada aos próprios jogadores – justamente os principais alvos de injúria no esporte.

Em geral, o tema só é abordado depois que um atleta é atacado. Só aí, muitos deles tomam ciência de seus direitos, como o de denunciar as ofensas à arbitragem e de fazer registro na delegacia local.

Dos portões para fora, houve um avanço no posicionamento do futebol brasileiro contra manifestações racistas. Os números mostram que o embate se faz necessário. De acordo com o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, 59 casos de injúria foram registrados nos estádios na última temporada. Um recorde desde que a contagem passou a ser feita, em 2014, e aumento de 34% em relação ao ano anterior.

— Atribuo a uma maior conscientização de torcedores e atletas, que vem denunciando mais — analisa Marcelo Carvalho, diretor executivo do Observatório, que faz uma ressalva ao lembrar que, hoje, parte da sociedade se sente mais à vontade para manifestações discriminatórias: — Contudo, não podemos negar uma relação deste aumento com o momento político do Brasil e do mundo.

Casos de racismo nos últimos cinco anos Foto: Editoria de arte do O Globo

Alguns episódios ganharam repercussão em 2019, como o do atacante Yony González, ex-Fluminense, e o do meia Matheus Henrique, do Grêmio. Ambos foram chamados de macaco por torcedores. Em nenhum dos casos providências foram tomadas.

— Procuramos o Matheus Henrique para saber se ele queria que levássemos a questão adiante. Mas o Grêmio fora eliminado (da Copa do Brasil, pelo Athletico). Não queríamos misturar a situação com choro de perdedor. E ele se sentiu incomodado de levar o assunto à frente. A gente respeitou — disse o diretor jurídico do Grêmio, Nestor Hein.

‘Eu sou negro?’

De uma maneira geral, os atletas tiveram mais contato com o tema nas campanhas realizadas ao longo do Brasileiro do ano passado, quando entraram em campo com camisetas contra o racismo. Na 7ª rodada, Grêmio e Bahia estamparam o símbolo do Observatório em seus uniformes. Na 34ª, em ação com a CBF, os times entraram com a camisa da campanha “Todos iguais”, levando a hashtag #ChegaDePreconceito nas costas.

Os raros exemplos de palestras se limitam às divisões de base. Foi assim no Botafogo, no Grêmio e no Corinthians, sempre em função de iniciativas do departamento de serviço social. No time paulista, elas foram realizadas pela pesquisadora Roberta Pereira e Silva. Nas conversas, a falta de consciência chamou atenção da assistente social.

— Uma das primeiras reações dos garotos é perguntar: “Eu sou negro?”. Muitos são chamados de macacos em campo e não entendem por que aquilo é direcionado a eles — conta a pesquisadora, que defendeu a tese “Campo de terra, campo da vida”, pela PUC-SP.

Um exemplo ocorrido no mês passado ilustra essa situação. Em conversa transmitida ao vivo pelas redes sociais, o zagueiro Matheus Thuler, do Flamengo, chamou Lincoln, seu companheiro de equipe, de macaco. Em postagens na internet, eles minimizaram o episódio como uma brincadeira fruto da intimidade existente entre eles.

Cartilha para debates

Para acabar com o tabu, o Observatório criou uma cartilha voltada às categorias de base. Ela seria usada em rodas de conversas com os jovens. Há uma negociação, ainda em caráter inicial, para ser lançada em parceria com o Bahia. Além de abordar a valorização do negro, a ideia é tratar de questões práticas como o reconhecimento e quais atitudes tomar em casos de injúria.

Um dos episódios mais recentes envolveu o zagueiro Miranda, do Sub-20 do Vasco, em jogo pela Copa RS, em Porto Alegre. Após um pênalti marcado a favor de seu time, o jogador denunciou ao árbitro ter sido chamado de macaco por atletas do Independiente-ARG. Ele acertou a cobrança e desabafou para a câmera de TV. No dia seguinte, registrou queixa na delegacia local ao lado de Carlos Brazil, gerente da base cruz-maltina.

— O comportamento varia de cada jogador. O Miranda é muito consciente. Conversa bastante sobre isso com a família — conta o dirigente, que admite apenas tocar no assunto com os atletas quando os orienta a não cair em provocações. — A gente faz várias palestras sobre álcool, drogas, comportamento… Mas confesso que, há dois anos aqui, não vi sobre racismo.

Leia também:

A lucidez de Roger Machado, treinador do Bahia, ao expôr as raízes do racismo no futebol brasileiro.

A barreira à ascensão dos dirigentes negros no alto escalão do futebol

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