Rappers de 11 anos rimam sobre escola e racismo

MCs mirins

por Tiago Dias no UOL

É final de tarde de uma terça-feira, e a ocupação da Frente de Luta por Moradia (FLM) na rua das Palmeiras, na região central de São Paulo, fervilha com os moradores que chegam do trabalho. Em um dos 170 quartos do antigo Hotel Lord Palace, conhecido em sua época áurea como “hotel dos artistas”, João, 11 anos, pluga um pen drive no amplificador, equaliza o som e o balanço, e se apresenta — seguindo a batida:

“Sou o MC Tum Tum, faço rap de verdade, espalho a verdade pelas ruas da cidade / com criatividade buscando conhecimento, chego na humildade mostrando meu talento / conquistando respeito através da poesia das quebradas da periferia”, canta. Dentro do quarto de 30 m², João explica o codinome. “Comecei a ouvir rap na barriga da minha mãe. Ficava batendo lá de dentro, tum tum, tum tum.”

De cabelo trançado, regata no estilo basquetebol americano, Tum Tum é apenas um exemplo de uma geração de crianças que tem encontrado no rap um hobby ou a promessa de um futuro melhor. Em tempos em que funkeiros mirins lotam shows nas periferias – e chamam atenção do Ministério Público pelas letras de forte apelo sexual –, esses MCs se voltam à cultura do hip-hop e falam de questões cotidianas e até mesmo raciais com desenvoltura.

Tum Tum ainda está no começo – tem apenas quatro músicas. Uma delas sobre a ocupação em que vive há três anos, cantada toda vez que ele participa das reuniões do movimento dos sem-teto. A última foi em uma quermesse na favela do Canão, na zona sul de São Paulo –berço do rapper Sabotage.

Ele garante que o funk nunca o atraiu. “Você viu o caso do menino de seis anos que canta palavras inapropriadas?”, pergunta, referindo-se a MC Vilãozin, com o funk “Tapa na Bunda”. “Só virei a cara.”

Ele foi uma das crianças que participaram do projeto “Futuro do Hip-Hop”, criado pela DJ Vivian Marques para ensinar discotecagem, rimas, grafites e dança nas periferias e escolas. “Vivemos em um mundo de culturas não construtivas”, observa. “E me surpreendi. A cada evento, mais crianças pediam para se apresentar.”

MC Soffia, 11, de São Paulo (SP)
MC Soffia, 11, de São Paulo (SP). Reprodução/Youtube

O rapper e apresentador Thaíde tem acompanhado o movimento: “Esse é o verdadeiro sentido da filosofia de vida da cultura hip-hop. Se eles estão desenvolvendo esse estilo com mensagens positivas, quer dizer que nem tudo está perdido, e que fizemos bem o nosso trabalho. Sinto-me orgulhoso”, comenta.

Pequena feminista

Com também 11 anos, Soffia aprendeu a cantar na oficina de Vivian e já finaliza o primeiro disco. O clipe de estreia, gravado no Rio de Janeiro, deve sair ainda este mês. Em encontro com a reportagem, ela chegou atrasada –a mãe Kamilah Pimentel entrega o motivo: “Ela não gostou muito de uma batida do disco. Pediu para trocar.”

Esse é o verdadeiro sentido da filosofia de vida da cultura hip hop. Se crianças estão desenvolvendo esse estilo com mensagens positivas, quer dizer que nem tudo está perdido, e que fizemos bem o nosso trabalho. Sinto-me orgulhoso 

Nas letras, a moradora da Cohab Raposo Tavares, zona oeste de São Paulo, propaga a beleza negra e os ideais feministas. “Somos mulheres, sempre, com certeza / Somos lindas, fortes, fortaleza / Meu nome é Soffia, como vai, tudo bem? / Eu espero que sim, porque tudo vai, tudo vem / Dizem que minha rima é da hora, então liga no papo que eu vou te falar, o que ensina uma MC vai além do ABC, vai até o Z de Zumbi”, canta.

Soffia exibe cabelo black power, mas nem sempre foi assim. Ela se lembra de quando tinha cinco anos e uma colega de classe comentou sobre seu “cabelo duro”. Voltou para casa chorando. “Eu alisava meu cabelo e falava que queria ser branca”, relembra. Com incentivo da mãe, a garota começou a frequentar eventos de hip-hop e a conhecer mais do movimento negro. “Canto hoje para as meninas aceitarem seu cabelo, sua cor. Não quero mais que ninguém passe por isso.”

Quando fala do futuro, se empolga: “Quando eu crescer, quero fazer medicina. Quero fazer um show com a Beyoncé, Nicki Minaj e Rihanna. Quero ter um programa na TV, vou chamar só gente negra, porque negro só faz papel de empregada.” De repente, se perde: “Qual foi sua pergunta mesmo?”.

Rap em família
Em Osasco, na região metropolitana de São Paulo,  Damyen, 11, também guarda certa timidez. Fala pouco, mas se solta no palco, onde canta e dança break. Gravando seu primeiro EP, o garoto cresceu vendo o pai rapper ensaiando. “Com quatro anos peguei o caderno de letras dele e pedi para cantar junto”.

“Firmeza Mulekada” foi escrita pelo pai com sua colaboração. Na letra, ele saúda os amigos: “Vai no embalo da batida, não no embalo do amigo, que querendo ou não querendo, acaba sendo inimigo”. Fã de Criolo, Dexter e Wiz Khalifa, ele diz que quer alertar a criançada que está no “caminho errado”. “Vi isso acontecer muitas vezes na minha escola.”

Já MC Cauan, do ABC paulista, frequenta a TV desde os cinco anos, participando de quadros de revelação de talentos. Seu rap é menos de protesto e mais sobre seu cotidiano. “Dia de Prova” traz rimas divertidas sobre o dia em que foi para escola sem estudar: “Já é quase meio dia é hora de ir pra rua / Não posso atrasar se não eu perco a perua / Chego na escola é aquela aflição / Inspetora, mochila, criança em frente o portão / Meu Deus do céu sei que hoje eu tô ferrado / Tô arrependido, devia ter estudado”.

Thaíde faz participação em uma dessas músicas, “É o Rap Nego”, e aposta: “Sempre senti verdade nas musicas dele. A mensagem positiva está escassa no rap brasileiro. Vi isso na música do Cauan”.

Assim como Damyen, o garoto de 11 anos desenvolveu o gosto observando o pai, também rapper. Ano passado, sentou-se com ele para dedicar uma música a “Carrossel”, seu programa favorito. A produção da novela infantil ficou sabendo e o chamou para se apresentar com o elenco em um show no interior de Minas Gerais. Era um sonho sendo realizado.

O pai Junior, que faz parte do grupo Vigilantes MCs, afirma que é cercado de conselhos e propostas: “Sempre dizem: ‘legal, mas ele podia cantar funk. Ia estar ganhando uma nota preta’. As pessoas não entendem. Por tudo que ele passou, não tem dinheiro que pague.”

Cauan nasceu com hidrocefalia (acúmulo de líquido dentro do crânio) e tem uma pequena dificuldade de locomoção. Ele sabe que o rap o ajudou na recuperação e promete: “Estou escrevendo uma música com meu pai sobre a AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente), que eu frequentei durante um tempo.”

Emoção maior, só quando subiu ao palco durante show dos Racionais MCs em Mauá, sua cidade. Nos bastidores, Mano Brown lhe deu um toque. “Ele disse para eu não desistir do rap. Que quando ele sair de cena, eu serei o futuro”, relembra. “Foi da hora!”

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