Realismo mágico, história da África e ficção científica: Conheça o Afrofuturismo

“O tempo é esta coisa realmente fluida. O agora é agora, mas o passado é agora e futuro também.”

Por Priscilla Frank, do Huffington Post

Assim é como a curadora e antropóloga Niama Safia Sandy descreve a ideia do Afrofuturismo, uma estética cultural que combina elementos de ficção científica, realismo mágico e história africana.

A origem do movimento artístico, musical e literário é frequentemente vinculada ao compositor de jazz e filósofo cósmico Sun Ra, que, cursando a faculdade na década de 30, teve uma experiência alucinatória na qual teria sido abduzido, levado ao planeta Saturno e presenciado um futuro profético.

“Meu corpo todo se transformou em uma outra coisa. Eu pude ver através de mim mesmo. E eu subi… Não era uma forma humana… Aterrissei em um planeta identificado como Saturno… eles me teletransportaram e eu desci até um palco com eles. Queriam falar comigo. Tinham uma antena em cada orelha. Uma pequena antena sobre cada olho. Conversaram comigo.”

Mas o autêntico termo Afrofuturismo foi usado pela primeira vez pelo crítico Mark Dery, em seu ensaio de 1994, intitulado “Black to the Future”, que analisava por que havia tão poucos escritores negros de ficção científica naquela época, devido aos vínculos inextricáveis do gênero com “o outro” e com a vida marginal.

“É possível para uma comunidade cujo passado foi deliberadamente apagado e cujas energias foram posteriormente consumidas pela busca de traços legíveis de sua história, imaginar futuros possíveis?”, Dery pergunta no texto.

“Além disso, já não é o estado irreal do futuro, de propriedade de tecnocratas, futurologistas, trens de alta velocidade e cenógrafos — sob a visão deles — que projetaram nossas fantasias coletivas?”.

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O Afrofuturismo é, muitas vezes, considerado um gênero cultural ou estilo, uma “reimaginação” da tradição africana que projeta possibilidades tecno-futurísticas. Mas, para Sandy, o movimento é mais do que um gênero literário — é vida real.

“Não é apenas uma coisa ideológica, é sobre como as pessoas vivem”, Sandy explicou ao The Huffington Post. “O realismo mágico é usado para falar sobre a literatura do outro, a literatura de praticamente todos os lugares com exceção do Ocidente.

Mas sinto que não é apenas um gênero literário, é como entendemos a Terra — uma cosmologia ambulatorial, como nos movemos pelo mundo.”

Sandy descreve como — através das lentes do Afrofuturismo — certos mitos, sinais, cores e sentimentos se tornaram símbolos para serem decodificados. Como a história e a natureza se tornaram textos para serem interpretados.

“Quando era criança, se saíssemos na rua e, de repente, começasse a chover, para minha mãe aquilo significaria algo”, diz. “É este significado impregnado em tudo o que você faz. É algo que nos foi transmitido através de gerações por intermédio de nossos antepassados.”

Nos últimos dois anos, Sandy tem sido curadora de uma exibição chamada “Black Magic: AfroPasts/AfroFutures (Magia Afro: Passados e Futuros)”, com artistas visuais multidisciplinares da diáspora africana.

Fotógrafas como A. Delphine Fawundu desconstroem ideias como a feminilidade negra, explorando a relação com a memória e a história em suas fotografias, muitas das quais foram tiradas na plantação onde ocorreu a rebelião de Nat Turner (escravo que liderou uma revolta no estado norte-americano da Virgínia, em 1831).

“Tem muito sobre olhar para trás e olhar para frente acontecendo neste trabalho”, disse Sandy. “Celebrar aquelas jornadas sejam elas intencionais ou forçadas.”

Além de Fawundu, artistas como Roger Bonair-Agard contribuíram com instalações de vídeos e poemas como “How the World Was Made — a Super Crown (Como o Mundo foi Feito — uma Super Coroa)”.

O poema de Bonair-Agard gira em torno do tradicional personagem da África Ocidental, Anansi — uma aranha, um deus e uma figura usada nas fábulas infantis contadas na época da diáspora. “No poema, ele é Anansi, aprendendo como se adaptar em [sua transformação] de aranha em pessoa”, diz Sandy. “Conecta essas ideias do folclore e histórias com as quais crescemos.”

Em um comunicado, Sandy resume a essência da exibição, uma conjuração mágica de forças passadas e presentes: “Interseções do passado, presente e futuro fundamentadas na magia que já estava no solo, no ar, transmitidas por nossos antepassados através da respiração, ossos, sangue, ritual, bem depois de termos atravessado o Atlântico todas essas vezes.

Carregamos isso conosco onde quer que vamos — esta cor abundante, ritmo, diversão… Por causa disso, vemos e escutamos mágica em tudo através da água, espaço e tempo.”

Em razão de sua exposição, “Black Magic”, Sandy compartilhou alguns de seus escritores, artistas e músicos favoritos que contribuem para a visão afrofuturista. Leia a seguir uma introdução irreverente aos criadores da magia afro.

Octavia Butler, escritora

“Quem sou eu? Sou uma escritora de 47 anos que se lembra de já ser escritora aos 10 anos e que espera algum dia ser escritora aos 80 anos. Também me sinto confortável como antissocial — uma eremita… Uma pessimista, caso não tome cuidado, feminista, negra, ex-batista, uma combinação de água e vinho de ambição, preguiça, insegurança e motivação.” Butler faleceu em 2006, aos 58 anos.

Livros recomendados: Kindred, Parable of the Sower, Fledgling (não publicados no Brasil)

Ytasha Womack, escritora

“O feminismo ‘mainstream’ poderia se beneficiar do senso de equilíbrio que o Afrofuturismo tem sobre a expressão. O Afrofuturismo é muito inconformado e, às vezes, sinto como se o feminismo ‘mainstream’ quisesse que as mulheres expressassem sua libertação de maneiras muito específicas, para se contrapor às narrativas prejudiciais criadas pelos homens. O Afrofuturismo não cria em oposição a nada. Como resultado, as mulheres afrofuturistas estão livres para fazer o que elas quiserem, e como isso se mostra é exclusivamente individual… A autoexpressão no Afrofuturismo não tem a ver com afirmar algo, tem a ver com ser [algo].”

Livro recomendado: Afrofuturism: The World of Black Sci-Fi and Fantasy Culture (não publicado no Brasil)

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Steven Barnes, escritor

“Sua parceira Lamiya estava tomando sol no convés de madeira com as filhas, Aliyah e Azinza. Lamiya era descendente do povo Afar, na costa do Lago Abbe, no antigo Djibouti. Yohela, uma serva idosa e solteira, havia acompanhado Lamiya nesta viagem, ainda assim, seu cabelo, trançado e frisado nos padrões típicos de Afar, nunca mantinha a mesma configuração por dois dias seguidos. Senhora de Kai há quatro anos, Lamiya era, tanto em face quanto em forma, a mulher mais elegantemente sensual que Kai já havia conhecido, e ele a adorava desde a infância.”— trecho de Zulu Heart.

Livros recomendados: Lion’s Blood, Zulu Heart (não publicados no Brasil)

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Nnedi Okorafor, escritora

“Sempre tive dificuldade em escrever sobre espaço. Sou muito terráquea. Não me vejo nunca deixando este planeta enquanto estiver viva (posso ser mais aventureira quando morrer, hehe). Ainda há tanto para descobrir (e corrigir) na Terra, por que procurar em outro lugar? E as crenças espirituais e sistemas de mágica que me atraem são terráqueos, nascidos e enraizados profundamente no solo.

Não estão nos ‘céus’. Além disso, quando escrevo sobre algo, tenho de me aproximar e sentir. Nunca me sinto próxima ao “espaço”, não importa quanta pesquisa eu faça.”

Livro recomendado: Quem Teme a Morte (Editora Geração)

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Maryse Condé, escritora

“O céu não é para mim, sonho com uma vida futura onde possamos expressar todas as emoções e desejos sufocados durante nossa vida: uma vida futura onde estaríamos finalmente livres para sermos nós mesmos. Desde que pequena, me questiono se a religião cristã não é uma religião para brancos, se é apropriada para nós, que temos sangue africano em nossas veias.— trecho de Corações Migrantes.

Livros recomendados: Corações Migrantes e Eu, Tituba, Feiticeira… Negra de Salem (ambos publicados pela Editora Rocco), Segu (não publicado no Brasil)

Ellen Gallagher, artista

“A área que faz sentido falar sobre raça em meu trabalho é minha ideia do subjetivo. Algumas pessoas podem ficar paradas em frente à minha obra sem ter nenhuma relação com ela, e outras podem ler os sinais, fazer leituras coesas baseadas nas qualidades formais ou subjetivas observadas. Quando você faz algo, se permite leituras que, às vezes, são equivocadas. Como artista, estou criando ficção sobre uma capacidade de leitura existente.

É sobre o que você falava quando era criança com os ‘Colorforms’ [adesivos] ou sobre o que eu fazia quando era criança, grampeando camadas de papéis de fantasia em minhas bonecas, aquelas camadas improvisadas, implicando um chamado e uma resposta. Não tem a ver com o público. Existe uma tensão entre o material projetado e seu sequestro. É improvisado para criar uma outra capacidade de leitura através da cegueira, através de um ato privado com a imaginação.”

Artist Ellen Gallagher At The ICA

Artista Ellen Gallagher, no Instituto de Arte Contemporânea.

Underdog, artista

“Meu trabalho é apenas uma maneira de recontextualizar e esticar o olho humano. Flerto com imagens e as trago para o ‘capítulo agora’, de reafirmação e descobrimento de nós mesmos. Quero apenas quebrar os corações das pessoas e remontá-los em uma imagem.”

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Cyrus Kabiru, artista

“Ser artista, para mim, [tem a ver com o fato] de que era um rebelde — eu era um pouco rude com todo mundo. Não me importo. Não sigo o que as pessoas querem — eu sigo o que quero. Na verdade, não gosto das pessoas. Quero seguir meu caminho.

Por isso, faço tudo oposto aos outros, e eles sentem que esse cara é um pouco rebelde. Quando era um garotinho, os adultos achavam que eu era um mau exemplo. Eles costumavam dizer: ‘Trabalhem duro. Se vocês não trabalharem duro, vão ficar como o Cyrus’. Eu era muito diferente.

Estava sempre em casa, mexendo com arte, pintando e fazendo esculturas, ninguém entendia o que eu estava fazendo. Não estudava, usava roupas desgrenhadas. Para eles, eu era um pouco estranho. Não sabia o que era domingo, não sabia o que era segunda, não sabia. Na África, vivemos empacotados.”

Conheça um pouco mais sobre o trabalho do artista aqui.

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Lina Viktor, artista

“Sempre fui obcecada com ouro. Acho que a humanidade como um todo sempre foi obcecada com ouro. É valorizado, reverenciado e sagrado. É uma forma de comércio agora. Sou um tipo de nerd astrofísica; realmente adoro coisas sobre o universo e aprender sobre a origem dos metais. Sei que o ouro, por exemplo, é feito a partir da morte de uma estrela — uma supernova.

Então, basicamente, todo o ouro que nunca foi extraído na Terra cabe apenas em três piscinas olímpicas. É realmente uma quantidade pequena — é um recurso muito escasso, por isso, tenho certeza, tem tanto valor.

Mas acho que há algo muito mais implícito no valor do ouro — quando você vê o ouro, o ouro verdadeiro, existe uma espécie de quociente emocional relacionado a ele que você não consegue obter quando usa ouro falso. Existe uma reação emocional quando as pessoas veem ouro verdadeiro.

Conheça um pouco mais sobre o trabalho da artista aqui.

Sun Ra, compositor, poeta, filósofo

“Não sou real, sou apenas como você. Você não existe nesta sociedade. Se existisse, sua gente não estaria buscando direitos iguais. Você não é real. Se fosse, teria o mesmo status entre as nações do mundo. Não venho até você como realidade, venho como um mito, porque isso é o que as pessoas negras são: mitos. Venho de um sonho que o homem negro sonhou há muito tempo. Sou, na verdade, uma presença enviada para você pelos nossos antepassados — trecho de Space is the Place.

Livro recomendado: This Planet Is Doomed (não publicado no Brasil)

Janelle Monáe, cantora

“Sou uma cibergarota sem um rosto, um coração ou mente / (um produto do homem, sou um produto do homem) / sou uma salvadora sem uma raça (sem um rosto).” — letra de “Violet Stars Happy Hunting“

Álbuns: The ArchAndroid” e “The Electric Lady

Dupla Ibeyi, cantoras

“Leve embora minhas folhas mortas
Deixe-me batizar minha alma com a ajuda de suas águas
Mergulhe minhas dores e reclamações
Deixe que o rio as leve, que o rio as afogue
Meu ego e minha culpa
Deixe-me batizar minha alma com a ajuda de suas águas
Esses meios antigos, tão envergonhada
Deixe que o rio as leve, que o rio as afogue.”— letra de “River”

Blitz The Ambassador, cantor

“Sempre senti o hip hop como uma cultura que ainda realmente não abraçou suas raízes internacionais. Quanto mais viajo, mais percebo que existe um papel específico que eu preciso desempenhar, e esse papel tem a ver com construir pontes e expandir a cultura da qual tenho tido a benção de fazer parte. Esta é a razão pela qual criei o Ambassador.”

Álbuns: Soul Rebel” e “Diasporadical

Blitz The Ambassador, cantor

“Sempre senti o hip hop como uma cultura que ainda realmente não abraçou suas raízes internacionais. Quanto mais viajo, mais percebo que existe um papel específico que eu preciso desempenhar, e esse papel tem a ver com construir pontes e expandir a cultura da qual tenho tido a benção de fazer parte. Esta é a razão pela qual criei o Ambassador.”

Álbuns: Soul Rebel” e “Diasporadical

A exposição “Black Magic: AfroPasts/AfroFutures” foi organizada por Niama Safia Sandy e exibida entre 24 de abril e 22 de maio, na Corridor Gallery, em Nova York.

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