‘Recuperação econômica passa por investir em mulheres e estado não olha para elas’, diz finalista do Prêmio Empreendedor Social

À frente de uma rede de 750 mil empreendedoras brasileiras, a alagoana Ana Fontes criou um projeto modelo de política pública no país. “Heróis Usam Máscaras” gerou renda justa para 6.500 costureiras, distribuiu 12 milhões de máscaras, fortaleceu ONGs e movimentou pequenas economias locais.

Fundadora da Rede e do Instituto Rede Mulher Empreendedora (IRME), Ana representa o Brasil no W20, braço da ONU que trata de igualdade de gênero nas 20 maiores economias. “No mundo inteiro se fala que a recuperação econômica passa por investir em mulheres e nosso estado não está olhando para elas”, diz.

Para além do aspecto econômico, dar autonomia financeira e autoestima contribuem para tirar mulheres de círculos de violência. Por isso, na pandemia, o IRME fechou parceria com o Ministério Público de São Paulo para acolhê-las em seus programas.

A finalista do Prêmio Empreendedor Social do Ano, que vai à votação popular na Escolha do Leitor, conta à Folha sobre sua atuação com mulheres durante a crise da Covid-19.

Como exatamente o IRME investiu em mulheres na pandemia?

Montamos uma fábrica virtual com 6.500 costureiras. Elas produziram quase 12 milhões de máscaras, que foram doadas para 220 organizações. Cada costureira recebia R$ 2.700 mensais. A gente fala que é uma tecnologia social. Porque além da geração de renda e da doação das máscaras para um público em vulnerabilidade social, geramos renda em toda a cadeia produtiva e movimentamos economias locais.

Como vocês financiaram a “Heróis Usam Máscaras”?

É legal evidenciar isso: três bancos concorrentes, Bradesco, Itaú e Santander, apostaram juntos na missão de produzir 12 milhões de máscaras. Agora estamos buscando outros financiadores para continuar, as máscaras continuam sendo necessárias.

O que ficou de legado deste projeto?

Ficou o entendimento da diferença que faz a mulher ser dona do próprio dinheiro. Quando você compra de uma mulher, você compra de alguém que vai ajudar a mãe, alguém que vai melhorar a escola dos filhos, que vai impactar mais quatro ou cinco pessoas.

Recebi o depoimento da Maria, costureira do Nordeste. Isso me tocou porque também sou de lá. Com uma máscara que ela produziu em mãos, Maria disse: “Essa máscara colocou comida na minha casa, mas também me fez sentir importante, porque o que estou produzindo aqui vai ajudar outra pessoa”. A autoestima que o projeto gerou foi uma percepção que não tínhamos, para além do efeito financeiro.

Que oportunidades as mulheres têm em um momento em que a economia patina?

As mulheres foram mais demitidas e estão com mais dificuldades para voltar ao mercado de trabalho. Se elas tiverem apoio, há possibilidades no ambiente do empreendedorismo, mas empreender não é simples, somos realistas. O governo poderia aproveitar iniciativas como “Heróis Usam Máscaras”, que trouxe resultados de geração de renda, como política pública.

Há um equívoco sobre o papel das ONGs. Elas são fundamentais, mas não substituem o papel do estado. Somos vetores, criamos tecnologias sociais, mas sem o estado não dá. Precisamos de políticas públicas.

Que políticas públicas faltam para mulheres empreendedoras?

Acesso a crédito diferenciado, pois as mulheres pagam melhor e trazem retorno; programas de acompanhamento e de aceleração de negócios, que existem em volume muito reduzido; e acesso a mercado. Nos Estados Unidos há uma defesa de que grandes corporações comprem de pequenos negócios de mulheres. No mundo inteiro se fala que a recuperação econômica passa por investir em mulheres.

Depois de um ano de pandemia, como está emocionalmente lidando com isso tudo?

Estamos inseguros porque o estado não está olhando para as mulheres. Como representante do Brasil no W20 [plataforma da ONU que trata de igualdade de gênero e empoderamento feminino nas 20 maiores economias do mundo], fico perplexa em ver nosso país em direção totalmente oposta ao que sempre foi –colaborativo, neutro e com posições progressistas em temas como gênero e diversidade. O país tem adotado posições retrógradas nos fóruns temáticos.

Como é o projeto de combate à violência doméstica do Instituto?

Ter autonomia financeira é fundamental para tirar mulheres de círculos de violência. Ano passado fechamos um termo de acordo com o Ministério Público de São Paulo para atender mulheres que passam por violência. A partir do final de abril, elas serão convidadas a integrar o programa “Ela Pode”, que tem foco na recuperação da autoestima. Serão inseridas nas oficinas e terão contato com outras mulheres.

O número de denúncias cresceu 30% e os promotores estão com muito trabalho. A pandemia não acentuou a violência, mas criou ambiente. A violência tem ingredientes como dependência emocional e financeira. Quando a mulher recupera a autoestima, a chance de ela voltar para ciclo de violência diminui.

Não atuamos na raiz do problema, pois não é nossa essência, mas trabalhamos para evitar o retorno a este ciclo.

Como o Instituto pretende usar as doações conquistadas na plataforma da Escolha do Leitor [neste ano, a enquete se torna maneira de contribuir com as dez iniciativas que mitigaram os efeitos da pandemia em 2020]?

Neste momento agudo, no mais emergencial: comprando cestas básicas para doar às mulheres da rede. Não dá para fazer programa de geração de renda se não há comida na mesa.

 

 

ANA LUCIA PEDRO FONTES, 54

Especialista em empreendedorismo feminino, é professora do Insper, delegada brasileira no W20/G20 e considerada uma das mulheres mais poderosas do Brasil pela Forbes. Migrou para São Paulo para fugir da seca e atuou por 18 anos na indústria automotiva.

Criou a maior plataforma de apoio ao empreendedorismo feminino no país, e o Instituto Rede Mulher Empreendedora, braço social que apoia aquelas mais vulneráveis na conquista de independência financeira.​

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