Em alguns estados, iniciam-se programas jurídicos para atendimento às vítimas de práticas de racismo
Por Sueli Carneiro
Foto: Marcus Steinmeyer
Em 5 de agosto último, na cidade de São Paulo, cerca de setenta advogados, entre eles professores universitários, juízes de direito, promotores de justiça, defensores públicos, negros e brancos, de vários estados da Federação, constituíram a Rede Nacional de Advogados e Operadores do Direito contra o Racismo e a Desigualdade Racial, num encontro nacional promovido pelo Geledés (Instituto da Mulher Negra de São Paulo) em parceria com o Escritório Nacional para Assuntos da População Negra Zumbi dos Palmares de Brasília e o Ceap (Centro de Articulação de Populações Marginalizadas do Rio de Janeiro), resultado de um longo processo de construção de uma perspectiva político-jurídica de enfrentamento das práticas discriminatórias presentes na sociedade a partir do enfoque legal. No início da década de 90, diversas entidades do Movimento Negro deram início aos primeiros programas jurídicos de atendimento às vítimas de discriminações raciais e às pesquisas jurídico-legislativas sobre direito e relações raciais. A iniciativa pioneira dessas entidades do Movimento Negro na luta contra o racismo foi orientada pela ausência do tratamento jurídico dos conflitos inerentes às relações raciais. A invisibilidade da questão racial alcançava também o mundo do direito apesar da existência de uma legislação penal de 1951, a Lei Afonso Arinos, que tipificava a prática de racismo como contravenção penal.
No cenário de surgimento dos programas jurídicos, havia agora a proibição do racismo como crime inafiançável e imprescritível, previsto como norma constitucional regulamentada pela Lei nº 7.716/89. Na área civil inaugurava-se a possibilidade do ajuizamento de ações judiciais para reparações de danos à moral, à imagem e à personalidade; ao mesmo passo ganhava publicidade o debate em torno dos chamados direitos coletivos e difusos, passíveis de reparação mediante ação civil pública e outros remédios constitucionais.
A atuação contundente dos programas jurídicos das entidades não-governamentais, apesar do grau de dispersão, conseguiu forjar um novo debate no direito brasileiro, tendo como conseqüência o surgimento de novos atores e de uma trincheira específica de luta contra a discriminação e as desigualdades raciais, com possibilidades de produzir resultados importantes para o conjunto da população negra. Em alguns estados, iniciam-se novos programas jurídicos com o aporte do Estado, inaugurando uma nova fase dos serviços de atendimento às vítimas de práticas de racismo. O tema também chega à Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil graças ao esforço desses atores.
Nesse cenário de inovações, os operadores do direito se deparam com a total ausência de produções doutrinárias e uma frágil jurisprudência nos tribunais estaduais. Ainda enfrentam uma forte crítica que coloca em dúvida a capacidade de transformação da tradição conservadora do direito brasileiro no que diz respeito à garantia do exercício da cidadania de setores historicamente marginalizados.
A proposta de construir uma rede nacional de advogados e operadores de direito nasce da compreensão de que o enfrentamento das práticas de racismo e da desigualdade racial é uma luta política e histórica realizada pela população negra no Brasil, que remonta às constituições dos quilombos. A partir desse patrimônio histórico de busca de cidadania real e concreta, a intervenção jurídica e legislativa que será implementada pela rede terá como dever tornar cristalinas as contradições que se escondem sob o manto de um discurso jurídico lógico-formal para ocultar o mito de neutralidade que opera nos tribunais, no Congresso Nacional e no Poder Executivo federal, quando apreciam os casos de racismo e quando se omitem em enfrentar o debate sobre a implantação de políticas de promoção da igualdade para população negra.
A rede nasce, portanto, com os compromissos de defesa intransigente do Estado de Direito, dos princípios constitucionais e das normas de proteção ao exercício e gozo da cidadania; o combate incansável às práticas de discriminação racial contra a população negra em todo o país; a luta por políticas públicas e privadas de promoção da igualdade que beneficiem a população negra; o repúdio a práticas de corrupção e de favoritismo no exercício da prestação jurisdicional pelo Poder Judiciário, sendo favorável ao controle externo do Judiciário; a criação, nas faculdades de direito, da cadeira ‘‘direito e relações raciais”; o repúdio a todas as formas de discriminação.
A rede reafirma a longa tradição herdada de incontáveis profissionais do direito do país, que dedicaram a vida ao combate das injustiças e iniqüidades sociais. Enfocando como prioridade as práticas perversas de racismo e discriminação racial na perspectiva da consolidação da democracia e da realização da igualdade de direitos, esses profissionais realizam uma vez mais a missão superior que lhes reserva a ordem constitucional segundo a qual ‘‘o advogado é indispensável à administração da justiça”.