Relatos selvagens

É inadmissível que a USP tenha tentado abafar estupros e violações de direitos humanos

Ruth de Aquino na Época

O que distingue a civilização da barbárie? Quatro episódios, todos ocorridos em São Paulo, nos perturbam pelo grau de violência, intolerância e, talvez, impunidade. São casos diferentes. Têm em comum o descontrole, a falta de valores humanos e a certeza dos criminosos de que nada acontecerá, porque a Justiça no Brasil tarda e falha.

Estupros e violações de direitos humanos na Faculdade de Medicina da USP.

Na semana passada, universitárias relataram na Assembleia Legislativa de São Paulo estupros sofridos em festas dos alunos. “Foi difícil levar os primeiros anos depois disso, ainda penso em desistir da faculdade. É uma batalha diária”, disse uma aluna que afirmou ter sido estuprada numa festa em 2011. O “Show da Medicina” incluía, no palco, sexo com prostitutas. Calouros eram obrigados a se embebedar. Um deles bebeu tanto que caiu e sofreu traumatismo craniano, segundo a promotora Paula de Figueiredo Silva. Outra prática selvagem é conhecida como “a pasta”: segura-se à força um colega para enfiar em seu ânus uma pasta de dente, como punição a uma ordem descumprida. O Ministério Público abriu inquérito. É inadmissível que uma instituição como a USP tenha tentado abafar essas violações para não denegrir sua imagem. A promotora acusa a diretoria de omissão. Os novos diretores da Medicina da USP lançaram a campanha “Direitos humanos: uma questão de saúde”. Absurdo ter de ensinar a futuros médicos o que significa respeitar a integridade física de alguém. O médico patologista Paulo Saldiva, professor titular desde 1996, decidiu afastar-se da universidade. “Cansei de engolir sapo”, disse. “A faculdade se comportou mal.” Metade dos calouros da USP está entre os 20% mais ricos do país, segundo um economista da Fundação Getulio Vargas. Esse crime envolve uma elite no Estado mais rico da Federação, numa das instituições de ensino mais conceituadas do país. Sem desculpa. Quem será punido?

O atropelamento, na calçada, de 15 pessoas que saíam de um culto evangélico no domingo.

Entre as vítimas, sete crianças. O menino Kauã Israel Castro da Silva, de 3 anos, morreu na quinta-feira. Um pastor estava internado, até sexta-feira, na UTI, com traumatismo craniano. O motorista, Renan Bento da Silva, de 26 anos, fugiu pela janela traseira e só se apresentou à polícia quatro dias depois, para evitar o flagrante. No carro, os policiais encontraram cerveja, cocaína e maconha. As marcas de freio na rua comprovam alta velocidade – ele estava a 118 quilômetros por hora. “Acelerei um pouco mais meu carro. Acabei perdendo o controle. Aí, o carro se direcionou (sic) diretamente para a calçada, onde se eestncontravam as vítimas, né? Se ficasse lá, eu seria linchado. Eles estavam muito bravos”, disse Renan. O carro “se direcionou” para a calçada? É demais. Renan saiu da delegacia pela porta da frente. O boné quase encobria o rosto, e ele pedia “perdão às vítimas”. Por que esse indivíduo não fica detido? Que exemplo é esse?

O espancamento de um casal gay, por 15 homens, num vagão de metrô, no domingo.

Um dos rapazes agredidos a socos e pontapés acabou com o nariz fraturado. Horrível, covarde e gratuito o ódio a homossexuais. Revela não só preconceito, mas doença. Diante de crimes assim, ainda hoje no século XXI, é pouco oportuna a passeata programada para 30 de novembro na orla de Ipanema, bairro amigo dos gays no Rio de Janeiro. A “Pequena Grande Marcha do Orgulho Hétero” é, segundo os organizadores, uma brincadeira, porque, dizem, heterossexuais estão sumindo. Pode virar humor negro, se os homofóbicos aderirem à passeata.

A agressão de uma mulher a um menino autista de 9 anos, no elevador.

Imagens de câmeras de segurança exibem a covardia. A mulher, Amanda Gyori, de 25 anos, diz que ficou “cega” quando a mochila do menino bateu na filha dela, de 4 anos. Ela entra no elevador e dá quatro tapas na cabeça do garoto. Depois, sai e volta: dois chutes e um soco. O menino ficou com marcas da agressão. Reclamou com a mãe, que se queixou à vizinha. Amanda negou tudo, antes de saber da gravação das imagens. A pena é de um mês a um ano de detenção. Será punida?

O título desta coluna é uma alusão ao filme primoroso Relatos selvagens, do diretor Damián Szifron, com Pedro Almodóvar na produção e Ricardo Darín como um dos protagonistas. Seis curtas-metragens mostram o descontrole brutal em situações cotidianas, como uma ultrapassagem em estrada, o reboque de um carro, uma traição amorosa, a culpa de um filho, a arrogância de uma autoridade. É tão caricato que todos rimos, para exorcizar nossos fantasmas. Na tela, a face mais cruel do ser humano. E também nossa incapacidade de lidar serenamente com a injustiça ou a impunidade.

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