‘Repito, pacientemente, tudo o que ela fez por mim quando era minha mãe’

Aos 67 anos ganhei uma filha. Uma menina emburrada, desconfiada de afetos e de carinhos. Passa mais tempo dormindo que acordada. Fala quase nada: Hum-hum, para dizer que está bem, que aceita alguma coisa, que vai deixar-se banhar. NÃO para responder a qualquer pergunta: Quer uma fruta!? Não. Quer ver um filme? Não. Quer sair para tomar um sorvete, um Açaí, espairecer um pouco? Não.

Por trás desse gênio birrento a menina tem medo de muitas coisas. De adoecer, de sentir frio, de ser atropelada, de cair, de morrer. É tanto medo que ela passa os dias encafifada, sentada numa cadeira de praia, a torcer as mãos. Pensando em que? Pergunto. Em nada, responde. Fico na dúvida se realmente não pensa, pois se a observo vejo seu ventre se contraindo involuntariamente, como um gato quando quer expelir sua bola de pelo.

Há um incômodo dentro dela, um contrafeito que ela deseja expulsar. O ar chega até à garganta e lhe aperta o pescoço. Respira mal. Respira como quem se afoga. Inspira fundo, aconselho. Tenta, mas o ar não faz o caminho inteiro da boca até ao baixo-ventre. Engarrafa entre o peito e o pulmão, milhares de histórias entupindo as vias, desejando chegar a um destino que o trânsito caótico de lembranças não desafoga.

Estaciona no sinal vermelho. Ouço as buzinas da sua pressa, deseja avançar o sinal, encontrar estrada livre e correr. Não pode. As pernas não lhe obedecem, travam-lhe a fuga. Só as mãos se contorcem, buscando solução. Os olhos secos perdidos num ponto à frente, desistidos de alcançá-lo, por longe demais ou impossível.

Às vezes minha menininha se abandona tanto à tristeza e à falta de desejos que dá vontade de niná-la com uma cantiga alegre e cheia de esperança. Ela me olha como se dissesse: Não perca seu tempo com esse teatrinho. Não acredito em nada nem em ninguém. Não confio. Não me entrego. Não vou!

Fico calada ao seu lado, olhando-a dormir encasulada em cobertores, na longa metamorfose que a fará voar. Enternecida, dou-lhe banho, leite quente, chá de erva cidreira, doces. Repito, pacientemente, tudo o que ela fez por mim quando era minha mãe.

+ sobre o tema

Obras do Rio são segregacionistas, afirma ativista da Maré

Walmyr Júnior, ativista e morador da Maré, critica as...

Pelo direito ao desenvolvimento dos povos e pessoas negras

Quem luta contra o racismo estrutural está advogando pela...

Após 2 anos, loja da BMW acusada de racismo é condenada no Rio

'Aqui não é lugar para você. Saia', teria dito...

para lembrar

O crime pede respeito

São numerosos os dados sobre pessoas com antecedentes criminais...

Nei Lopes – Retratos do Brasil Negro

Poeta, compositor, sambista, pesquisador e escritor, Nei Lopes é...

“Ei, homem branco, salva a tua raça”: a proliferação de páginas nazistas no Facebook

por Marcos Sacramento A Comissão de Igualdade Racial da OAB-RJ vai...
spot_imgspot_img

Relatório da Anistia Internacional mostra violência policial no mundo

Violência policial, dificuldade da população em acessar direitos básicos, demora na demarcação de terras indígenas e na titulação de territórios quilombolas são alguns dos...

Aos 45 anos, ‘Cadernos Negros’ ainda é leitura obrigatória em meio à luta literária

Acabo de ler "Cadernos Negros: Poemas Afro-Brasileiros", volume 45, edição do coletivo Quilombhoje Literatura, publicação organizada com afinco pelos escritores Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa. O número 45...

CCJ do Senado aprova projeto que amplia cotas raciais para concursos

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou nesta quarta-feira (24), por 16 votos a 10, o projeto de lei (PL) que prorroga por dez...
-+=