Resenha: “Amor e Sofrimento – O acaso destino de uma mulher negra”

O acaso muitas vezes é precedido por uma urgência, uma rapidez qualquer no nosso tempo de vida que exige escolhas rápidas e fáceis. Que nem sempre são tão rápidas e tão fáceis. Foi deste modo que o livro da escritora Maryse Condé Eu, Tituba, Feiticeira… Negra de Salem, apareceu para mim. Quando falo, apareceu não me refiro a uma visão onírica, nem do além. Trata-se da terrível sorte do acaso, que já me mostrou uma infinidade de livros e autores que jamais poderia conhecer pela via sacramentada da academia.

Por Alef Lima

Estava eu procurando um livro que há tempo tinha visto na Biblioteca de Ciências Humanas da Universidade Federal do Ceará. Procurava por Rachel de Queiroz e já fazia alguns meses que tinha lido um de seus livros e me encantei, resolvei escavacar a prateleiras, com o intuito de rememorar a emoção nordestina que é ler Rachel de Queiroz. Mas, algo aconteceu e o livro não aparecia. Num dado momento vejo-me capturando um livro amarelado com a pintura de uma negra, colhendo uma flor alaranjada. Verifiquei o título, a autora e a editora. Coloquei de volta na estante e voltei a minha busca. Desistir em cerca de vinte minutos de procurar aquele livro que não se revelava. Notei o momento em que uma moça colocava aquele livro amarelado de volta a prateleira como eu fiz há instantes atrás. E não permitir novamente aquele ato de desprezo, interrompi aquela ação. Levei o mesmo junto com outros que haviam me comovido.

Nunca tinha ouvido falar em Maryse Condé, Barbados, Tituba ou qualquer daqueles nomes expressos na capa e na contracapa. Detive-me apenas em examinar o que o livro dizia de si. Tratava-se de uma mistura entre documento histórico e imaginação literária, com suaves toques de feminismo, um tempero de amor, uma história úmida de sofrimento e a latência da religiosidade africana. Tudo parecia encaixar-se numa rota biográfica e apontava para os dilemas heroicos e humilhantes pelos quais, os negros trazidos do continente africano caminhavam com correntes pesadas, rostos desprezados, beleza altiva, e uma brisa cada vez mais densa de revolta.

Na realidade o livro tem a função de um diário, conta a história de Tituba uma negra que nasceu do estrupo que sua mãe sofreu de um marinheiro bêbado, remontando passo à passa a constituição de sua personalidade. A mãe de Tituba chamava-se Abena e era descendente de uma etnia africana, chamada Ashanti ainda tinha no rosto cicatrizes tribais dos seus tempos infantis. Era uma bela negra. Ela tinha sido comprada por um fazendeiro da ilha de Barbados, nas Antilhas. Ele tinha uma vasta plantação de cana-de-açúcar, junto com ela também havia adquirido dois homens fortes da mesma etnia.

E assim começa a aventura de nossa heroína no início do século XVII, na condição de escrava, de mulher, de uma futura feiticeira. Resumido: a história inicia-se com sua mãe que foi dada pelo seu dono a um negro que, no entanto, se mostrou afetuoso e um grande companheiro, dando amor e atenção àquela pequena criatura que havia nascido de um ato de violência. Mas, aquela atmosfera não existiu por muito tempo, para se livrar de um segundo estupro Abena atacou o fazendeiro que a tinha comprado e foi condenada a forca. O seu companheiro suicidou-se tamanha a dor daquela perda. Tituba ficou sozinha e foi expulsa das plantações.

Não ia demorar muito para que aquela criança que tinha apenas 5 ou 6 anos de idade fosse morta pelos intempéries ou pela fome. Porém, a solidariedade dos escravos não permitiu tal fato e logo ela teve uma nova mãe. Uma mulher já idosa chamada Man Yaya, conhecida como feiticeira, ela falava com os invisíveis (os espíritos dos mortos), conhecia as plantas, suas combinações, os unguentos, os emplastros, a transmutação das formas e as formas diversas dos sacrifícios. Tudo isso foi ensinado à pequena Tituba que cresceu aprendendo a religiosidade africana, e principalmente a ideia de que tudo aquilo tinha um único sentido: dar alívio aos angustiados e fazer somente o bem. Mesmo os homens controlando a externalidade da natureza, não reconheciam os rastros ocultos que governam os seus destinos.

Cruel mesmo é carne que faz sofrer pela saudade o espírito. Mesmo sendo órfã, a sina de Tituba tornava a se repetir e sua nova mãe também morre em decorrência da idade. E junto com o espírito de sua mãe e de seu protetor, tornam-se confidente daquele ser que vivia nas terras pantanosas da ilha de Barbados. Por meio dos conhecimentos adquiridos ela conseguiu sobreviver, aos ventos e as chuvas. Porém, o amor como instância de sofrimento não poupa o mais sofrido dos seres. Fecha-se a roda do destino, uma mulher, negra, filha de uma escrava, adotada por uma bruxa; se apaixona e seus males iniciam com um amor que a leva a aldeia de Salem.

Tituba conhece John Índio um mestiço que trabalhava para a nova dona das plantações de cana. Surpreende-se ao querer arrumar o cabelo, ao encontrar uma feminilidade esquecida no meio do lodaçal do pântano. Num ato de desespero juntar-se a aquele homem e se ver, escravizada. Não só por John Índio, mas também pela sua sinhá, mulher puritana e viúva que obrigava seus escravos a rezar o pai nosso. E que desprezava a negrume da cor negra como se fosse uma marca cruel da “danação”.

A heroína é tentada a se colocar contra aquela mulher e seus poderes outrora voltados para o bem se tornam uma arma. No entanto, um preço deve se pago e Tituba é levada junto com seu companheiro para Salem por um pastor puritano, frio e calculista. Lá conhece a família desse homem: sua mulher e duas sobrinhas. Apega-se a essa gente e como resultado usa por várias vezes seu poder com as ervas e as plantas para curar-lhes a saúde. Mesmo assim quando chega a aldeia de Salem é acusada de bruxaria e sofre uma série de humilhações.

Bruxaria que na realidade não passava de um grande esquema político de seu dono que estava com salários atrasados. Sendo isso, somente a ponta do iceberg; querelas econômicas e políticas mais amplas envolvendo toda a província de Massachusetts estavam em jogo. No fim consegue passar pelo julgamento sem pegar a pena máxima. Mas, melhor teria sido a morte, a prisão lhe quebrou o espírito e aquele lugar sombrio a emagreceu. Fez seus dentes caírem. Tinha uma amiga naquele lugar, mas seus dias não eram abrandados devido saudade de sua terra.

No final é comprada por um judeu que lhe concede amor na cama e liberdade ao passar por momentos complicados. Finalmente depois de um longo percurso, encontrava-se de volta a sua terra, lutou contra o mar e o vento e venceu parcialmente suas forças. Chegando lá foi levada ao esconderijo de negros que haviam fugido e criavam uma espécie de comunidade “quilombola”. Lá outra vez enveredou-se com um homem que lhe causou uma gravidez. Decidiu que era melhor voltar a suas terras pantanosas para criar aquele bebê e conseguir um pouco de descanso. Mas, o destino lhe pregava novas peças e um outro escravo aparece em sua vida, junto com ele e suas intenções revolucionárias: esperava por ela a forca e a morte de sua filha que se quer chegou a nascer.

As condições da escravidão se agravam para uma mulher. Tituba tinha sido avisada várias vezes ao longo de sua trajetória pelos espíritos de suas mães, acerca do amor daquele homem, do amor de todos os homens. Sua religiosidade foi tomada como maligna, sua cor sinalizava a marca demoníaca, seus sentimentos foram traídos. Tantas vezes o sofrimento é simétrico ao amor, no caso de nossa heroína ele simbolizava todo um percurso histórico de um povo separado de sua terra.

Se o que se espera de um livro baseado em sentenças de um julgamento que aconteceu em 1692, é a frieza de argumentos objetivos que tenham como intenção retratar de maneira fiel uma época puritana e hipócrita. Não é isso que o leitor irá encontrar, na realidade ele terá acesso a uma vida cálida, sem grandes sobressaltos que foi criminalizada injustamente, traída injustamente. Uma vida solidária para com o seu povo, sofrida e simpática ao alívio dos sofrimentos dos outros. É Tituba uma negra, feiticeira, escrava, mulher, pobre, analfabeta, traída, sem descendentes. Como é similar sua condição com tantas outras? Por que tanto sofrimento em troca de pouco amor? Seria esse o destino de todas? Será que é isso, o amor nos faz temer a vida?

Não sei como responder essas perguntas pois também sou um alvo de acasos como qualquer um, como o acaso que me fez ler esse livro singelo e complexo. Também tenho medo de amar, depois de ler sobre o sofrimento de Tituba. No final parece que não resta muito a se fazer. Amar se impõe enquanto sofrimento. Particularmente recomendo a leitura desse livro, não por tratar do sofrimento, ou do amor, ou da escravidão. Mas, sim pelo acaso, pela urgência de compartilhar as angustias que nos fazem prisioneiros do destino social do amor (o sofrimento) – para poder subvertê-lo pela emergência inesperada do acaso das paixões passageiras.

 

CONDÉ, Maryse. Eu, Tituba, Feiticeira… Negra de Salem. Tradução de Angela Melim. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

Referências:

NOVAES, Adauto (Org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Cia das letras, 2009.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Cia das letras, 2007.

[1]Ganhadora do “grand prix littéraire de la femme”. Professora de literatura antilhana na Universidade de Columbia.

F0nte: Ad Observare

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