O país do Carnaval é o país da brincadeira. E durante o Carnaval a brincadeira mais aclamada é a “Nega Maluca”. Um homem branco, se veste de mulher negra, pra que as pessoas possam dar risada dele. Sim, porque ser mulher e negra deve ser muito engraçado.
por Stephanie Paes
Mas no país do Carnaval, onde eu estou acostumada a ver a versão brasileira do black face “apenas” durante o Carnaval e talvez durante algumas festas a fantasia, eis que me deparo com a versão extravagante da chacota no meio da Marcha das Vadias, em Curitiba. O responsável me disse se tratar de uma homenagem, uma representação. E é aqui que eu, enquanto mulher negra quero ensinar uma coisa a todos os homens brancos que acreditam serem capazes de me representar.
Você sabe o que é ser mulher? Você sabe o que é ser mulher negra?
A origem do black face é facilmente encontrada em qualquer site de busca, o retrato caricato do indivíduo negro, com reforço de esteriótipos criados e perpetuados pelo homem branco. A tentativa de padronização dos nossos corpos, do nosso cabelo, da nossa pele. Além da forma pouco sutil e muito eficaz de manter atores negros longe dos palcos. As peças eram geralmente de chacota. O foco da risada: o personagem “negro”. O público alvo: sulistas estadunidenses em sua maioria, ex escravistas
Vou ressaltar que o objetivo original do black face era não somente a ridicularização do ser negro através de uma caricatura exagerada, mas também impossibilitar que indivíduos negros fossem capazes de representar a si mesmos.
Quando trazemos esse contexto para o cenário brasileiro e fazemos uma analogia à personagem carnavalesca Nega Maluca temos um agravante na história: a caricatura de uma mulher negra, hiperssexualizada, encarada como moeda de troca para o turismo sexual. O black face dos Estados Unidos reforça o esteriótipo do negro ridicularizado, a Nega Maluca do Brasil reforça o esteriótipo da “mulata exportação”.
Dentro dessa análise, como é possível que um homem branco, vestido de mulher e com tinta preta no rosto (exceto em volta dos olhos e da boca, qualquer semelhança é mero reforço de esteriótipo) seja capaz de estar fazendo uma homenagem a nós, mulheres negras, no meio de uma manifestação que pede o fim da violência contra a mulher e a liberdade sobre os nossos corpos?
Black face não é homenagem em contexto algum! Black face é racismo! E se vestir de mulher enquanto pratica o black face é dar voz ao patriarcado racista que ridiculariza nossos traços étnicos, que nos paga menos pelos mesmos serviços, que nos negligencia em atendimentos médicos, que vende nossos corpos como atrativo turístico e depois nos impede de realizar abortos.
Eu não quero homenagem racista e muito menos quero que um homem branco diga que está me representando. Nós somos capazes de nos representar. A mulher negra é força, a mulher negra é garra, a mulher negra é resistência. E nenhum homem branco com o rosto pintado será capaz de representar o que minha ancestralidade carrega dentro da minha pele. Nenhum homem branco nunca vai entender o que é o peso do machismo e do racismo tentando me levar pra baixo dia após dia. Nenhum homem branco vai me dizer que está me representando enquanto se utiliza de uma ferramenta racista histórica.
Ser mulher não é vestir saia uma vez por ano. Ser mulher negra não é pintar a cara com tinta preta.
Eu sou a mão que lava as feridas que não são mais causadas por açoite, mas por coronhada.
Eu sou a música que alegra o teu samba, esquenta tua cama, mas é trocada pela loira na hora de ser apresentada pra família.
Eu sou o grito da mãe que perdeu o filho pra guerra no morro.
Eu sou o choro da esposa que clama pelo retorno seguro do marido até em casa.
Eu sou a voz que reza por justiça para todos os meus que, apenas por serem negros, são tratados como inferiores.
Eu sou a mão que vai pesar na tua consciência toda vez que você pensar em ridicularizar minha raça.
Racistas não passaram, racistas nunca passarão!
E sai da frente com sua tinta guache preta, que EU to passando com a minha cor!
Blackfaces
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