Resenha do Livro Abdias do Nascimento, de Sandra Almada

Ricardo Stuckert/Agência Brasil

Por Jair Silva

Abdias Nascimento

ALMADA, Sandra. Abdias Nascimento. São Paulo: Selo Negro, 2009, 166p.

Convidada pela Editora Selo Negro para contar em uma biografia a vida de um grande e conhecido militante negro que viveu por mais de 90 anos de idade, o que não deixa de ser um imenso e gigantesco desafio para qualquer escritor que se aventure a escrever sobre a trajetória de um ativista e humanista da dimensão histórica e grandeza moral, cultural e intelectual como carregava Abdias do Nascimento em sua brilhante trajetória de luta contra o racismo no Brasil e no mundo.Para a nossa alegria e felicidade, Sandra Almada aceitou essa tarefa com muita maestria, sensibilidade e competência. Uma professora universitária negra e pesquisadorapreocupada em reconstruir,valorizar e contar para o grande público a imagem e história dos afro-brasileirosno nosso Brasil, apesar de não ter na sua formação o ofício de historiadora em seu currículo acadêmico. Essa jornalista,também, já nos brindou com o livro Damas Negras-Sucesso, Lutas e Discriminações,uma obra que narra e conta a trajetória de atrizes negras como Léa Garcia, Chica Xavier, Zezé Mota e Ruth de Souza.

Com uma linguagem tipicamente didática e de fácil compreensão, como se quisesse atingir e conquistar o máximo de leitores nesse livro que contém 10 capítulos e 166 páginas. A jornalista Sandra Almada ao dizer que “diferentemente dos relatos historiográficos queapresentam de forma grandiosa os feitos monumentais de homens ligados às elites”(p.20), percebe-se claramente que de imediato ela quer colocar o leitor para conhecer a biografia de um negro oriundo das classes populares e que fez da sua trajetória social uma história de superação e luta contra as adversidades provocadas pelo racismo.É o que podemos perceber já no primeiro capítulo quando há uma transcrição da fala de Abdias Nascimento sobre o racismo que o mesmo enfrentou na vida escolar, mostrando que as professoras sempre encontravam formas ofensivas para falar com ele e a revelação triste de um racismo hostil que no ambiente educativo excluía o menino de fazer parte do teatro de fantoches, na escola.

Acreditamos que essa preocupação da escritora em detalhar os difíceis anos da infância e adolescência de Abdias no município de Franca, cidade onde o grande e respeitado ativista negro nasceu sob a condição de filho de uma doceira e cozinheiraque prestava serviços em fazendas da região. A autora revela que o menino Abdias tinha que trabalhar entregando leite e carne na casa de famílias abastadas, com apenas nove anos de idade. Ou trabalhando na condição de faxineiro num consultório de um médico onde teria começado os seus primeiros passos na literatura, entre os seus12 e 13 anos de idade, segundo a autora desta biografia.Na nossa concepção,ao discorrer sobre esse período da sociedade brasileira, mostrando como a população negra foi marginalizada num estado onde a imigração branca-europeia substituiu o negro no mercado de trabalho. Ao fazer esta analise tendo como base a vida familiar e social de Abdias Nascimento a autora revela para os leitores o alto grau de racismo impregnado no comportamento das elites da época,ao mesmo tempo em quenos mostra e faz entender toda uma conjuntura histórica e social naqual a raça negra foi jogada à própria sorte como diria Florestam Fernandes ao analisar a vida do negro na sociedade de classes, durante a chamada sociedade pós-abolicionista nas primeiras décadas do século XX.

Não temos dúvida que essa talvez tenha sido a principal intenção desta pesquisadora ao detalhar para o leitor determinados fatos e aspectos pouco conhecidos da vida de Abdias em Franca,cidade do interior do estado de São Paulo. Entretanto, esta escritora que há 20 anos acompanhava a militância de Abdias Nascimento não fica só no discurso da vitimização, já que a primeira lição de solidariedade racial que teve Abdias foi quando sua genitora impediu uma mulher branca de surrar uma pobre criança negra. Também gostei de ter lido notexto da jornalista Sandra Almada o gosto pelas letras e artes que marcou a adolescência dofuturo escritor e ativista negro. Vejo que esse tipo de informação faz com que o leitor entenda como um negro pobre e discriminado superou a ignorância imposta à população negra pela elite branca e racista da época, ao relatar relações de amizade construídas por Abdias Nascimento quando o mesmo foi chamado para tomar conta de um consultório de um dentista, onde ele teve a sorte de ter acesso a uma rica biblioteca a qual lhe possibilitou o convívio com leituras de obras clássicas de autores como os Sertões de Euclides da Cunha, A Carne de Júlio Ribeiro, O Ateneu de Raul Pompéia, além dos livros de Monteiro Lobato.

Já nos capítulos 2 e3, anossa autora convida o leitor a conhecer como Abdias teve contato com a cultura negra no Rio de Janeiro quando morava no morro da Mangueira e na cidade de Duque de Caxias e seu engajamento político com algumas entidades, a exemplo da Frente Negra Brasileiraem São Pauloe Ação Integralista Brasileira. Poderíamos debater e problematizar váriosaspectosrelevantes da vida deste ativista negro a partir das observações destapesquisadora. Poderíamos mostrar, por exemplo, as relações de amizadedo militante negro com o poeta, ator, escritor, teatrólogo e comunista Solano Trindade, assim como daria para descrever também que Abdias conviveu com nomes importantes da cultura negra brasileira como o maestro Abigail Moura, regente da Orquestra Afro-Brasileira e pioneiro na criação de música erudita influenciada por ritmos negros, e sua relação com a comunidade terreiro do babalorixáJoãozinho da Goméia. Mas,como fazer história é fazer escolhas, prefiro me ater a uma parte da história bastante polêmica narrada pela escritora ao entrevistar este pensador e pesquisador da História e culturas africanas e afro-brasileiras. Refiro-me a discussão que o livro traz para o leitor pensar sobre o que levou um negro progressista e libertário a entrar num movimento de inspiração facistae que foi criado por Plínio Salgado em 1932-a AIB.Para a jornalista Abdias foi sensibilizado pelo discurso anti-imperialista e nacionalista fortemente defendidos pelos integrantes da AIB e isto foi o que justificou a adesão do grande militante panafricanista a essa corrente política na época. Curiosamente, o livro na fala do engajamento nacionalista de Abdias na campanha O Petróleo é Nosso, o que não deixa de ser uma pequenafalha da nossa autora, por se tratar de um episódio tão importante da política nacional.

Ainda com base na visão desta escritora a adesão ao integralismo teria sido uma experiência positiva na vida do militante negro,visto que o nosso biografado passou a conviver com personalidades e intelectuais da cultura e política nacionais como Alceu Amoroso Lima, Roland Corbisier, Don Elder Câmara e Adonias filho, apesar de todo o racismo praticado contra a raça negra por membros que faziam parte da Ação Integralista Brasileira. É bom frisar que este preconceito racial o militante negro sentiu na pele, pois, segundo a autora mesmo ele sendo colaborador do jornal O Radical da AIB o secretário de redação não publicava fotos de Abdias ao lado dos entrevistados nas matérias.Entretanto,para este grande teatrólogo afro-brasileiro “o integralismo foi uma grande escola de vida”(p.53), tendo em vista que para um jovem pobre e sem muitas perspectivas de vida, à época, ao participar do movimento integralista ele passou a ter uma visão mais ampla sobre educação, cultura, literatura, artes, economia e sobre os grandes problemas da sociedade brasileira como disse o próprio Abdias do Nascimento ao explicar sua adesão a um movimento tão elitista, conservador e facista, como de fato foi a AIB. Felizmente, Sandra Almada mostra para o leitor que Abdias Nascimento conseguiu se redimir em atitudes e palavras ao relatar que em 1937 este ex-militante do movimento negro deixou a Ação Integralista Brasileira, passando a fazer declarações públicas de repúdio as ideias desse movimento como podemos constatar durante a Convenção Política do Negro Brasileiro, que foi presidida por ele em São Paulo, no ano de 1945.

No4º capítulo,Sandra revela um lado aventureiro epouco discutido quando se fala da vida do grande militante que vivia no Rio de Janeiro dividido entre “porres homéricos” e “discussões apaixonadas sobre arte e cultura”(p.62). Ela também nos leva a conhecer a vida de um rapaz que não estava preocupado com interesses nacionalistas e com questões ligadas ao movimento negro. Aqui a obra revela ao leitorumoutro Abdias em sintonia com “aquela coisa de desprezar a lógica, renegar a ordem social e moral” (p.62). Foi pensando dessa forma que ele entrou para um grupo formado por artistas, poetas, jornalistas e escritores– o grupo cultural Santa Hermandad Orquídea,viajando para países como Bolívia, Colômbia, Peru e Argentina.

O mais interessante nessa parte do livro reside num fato que aconteceu na cidade de Lima. Conforme essa autora, foi na capital peruana que ao assistir a peça O Imperador Jones em que o papel principal era protagonizado por um ator branco, que Abdias passou a refletir sobre a exclusão da raça negra no teatro brasileiro. Para que o leitor compreenda o impacto que teve essa cena na cabeça do jovem poeta e ator, Sandra afirma que a peça escrita pelo dramaturgo EugeneO’Neill tinha como personagem central um negro de nome Brutus Jones e tudo isto, obviamente, faz com que possamos compreender de forma mais objetiva os motivos que levaram o ativista a criar mais tarde o Teatro Experimental do Negro.

Ao discorrer sobre o capítulo 5, parte mais densa e que mereceu mais atenção da autora, obviamente por se tratar dos grandes embates travados pelos integrantes do TEN, sobretudo pela atuação marcante de sua maior liderança e fundador dessa experiência teatral, cujo objetivo era o combate ao racismo e valorização da História e cultura afro-brasileira. Nesse contexto, percebemos quea sua narrativa nos remete, a nosso ver, as fases mais ricas e produtivas do ponto de vista político e intelectual de Abdias.Não foi por acaso,que essa jornalista dedicou 27 páginaspara relatar ações e lutas antirracistas organizadas pelo Teatro Experimental do Negro durante os anos 40,50 e 60,destacando para nós diversas experiências que surgiram nesse período, a exemplo do jornal Quilombo, umveiculo de comunicação que foi utilizado como uma verdadeira tribuna de luta contra as desigualdades raciais e que contava com a colaboração de escritores e intelectuais do nível de Nelson Rodrigues, Solano Trindade, Carlos Drummond de Andrade, Raquel de Queiroz, Gilberto Freire,etc.Osconcursos de beleza Boneca de Piche e Rainha das Mulatas, pioneiros na valorização da estética da mulher negra brasileira, também são exemplos realçados pela jornalista para que tenhamos uma visão mais ampla e plural do que foram as lutastravadas pelo Teatro Experimental do Negro.

Queremos deixar bem claro que não é pretensão nossa analisar em uma resenha todas as lutas e fatos que Sandra nos oferece em relação a esse teatro produzido por negros e para os negros. Mas, acreditamos que esta obra nos oferece elementos importantes para que possamos compreender o que foi realmente esse movimento cultural negro que marcou as relações raciais no nosso país. Nesse item, podemos afirmar que o livro representa uma boa contribuição no processo de reelaboração da memória do povo negro, tendo em vista que em todos os níveis da educação brasileira poucos são os livros de História que abordam a existência de nomes como do advogado e talentoso ator Aguinaldo Camargo, do pintor Wilson Tibério e do intelectual e crítico de arte Ironides Rodrigues. Particularmente,vejo como extremamente positiva a forma como esta pesquisadora traz para a cena histórica o trabalho de negros e negras marginalizados por essa historiografia racista e ocidentalizada que, a rigor, nos impedi de ver o quanto essa experiência teatral foi importante na compreensão do racismo e na construção do processo de conscientização, luta e organização dos negros daquela época.

Ainda nesse capítulo,concordo com a autora quando mostra que o TEN não estava isolado na sua difícil luta pelo fim da discriminação racial enfrentada nesse tempo pelaraça negra. O livro relata queos membros dessa organização negra mantinham contato comos principais jornais dos afro-americanos, assim como traduziu e divulgou o texto Orfeu Negro de Sartre e ainda reproduziu artigos de um jornal, organizado pelo doutor em ciências sociais Du Bois e a ligação que nutria com o movimento da negritude através da revistaPrésenceAfricaine. Na verdade, o livro é bastante rico em informações sobre o TEN, mas tem uma que merece destaque da nossa parte por se tratar de um debate extremamenteoportuno na educação contemporânea. Falamos da declaração final do I Congresso do Negro Brasileiroque ocorreu em 1950 e que esta escritora discute com clareza no livro. Ora, se hoje as escolas públicas e particulares são obrigadas a ter no seu currículo aulas de História da África e Cultura Afro-Brasileira, não podemos negar que esta foi mais uma das contribuições do TEN para a posteridade e de seu criador Abdias Nascimento, uma vez que neste documento final do Congresso recomendava-se junto ao Estado brasileiro “o estímulo ao estudo das reminiscências africanas no país”(p.88).

Já nos capítulos 6 e 7, o livro traz uma discussão sobre o pan-africanismo, o exílio e como o ativista brasileiro viveu num país onde a segregação racial vigorava de forma ostensiva. A autora informa que Abdias mesmo correndo o risco de ser expulso dos Estados Unidos ele “não deixou de se posicionar a favor da luta dos negros americanos”(p.96). Na Pátria americana,o poeta e artista plástico conviveu com lideranças e organizações negras americanas, além de ter sido convidado para fazer parte de simpósios,palestras, conferências econgressos promovidos por galerias de arte e Universidades. Um dado importante e que merece ser mencionado foi a criação da cadeira de Estudos Africanos no Novo Mundo que esta obra não registra,embora tenha sido uma das conquistas do ativista brasileiro nos Estados Unidos quando ele exerceu a função de professor na Universidade de Nova York. Além desses assuntos, a nossa autora também revela o envolvimento do ator e teatrólogo como pensamento pan africanista em que “Abdias optaria pela vertente nacionalista, encabeçada por Patrice Lumumba, AiméCesaire, Cheikh Anta Diop e Steve Biko”(p.108) , pois não aceitava nem o capitalismo nem o socialismo como alternativas para solucionar a problemática do racismo no mundo, de acordo com os argumentos da jornalista Sandra Almada.

Nocapítulo 8,concordamos mais uma vez com esta autora quando diz que ele foi “o primeiro parlamentar afro-brasileiro a dedicar seu mandato à luta contra o racismo” (p.120). Essa afirmação feita por essa jornalista descreve através das inúmeras lutas políticas que o grande militante negro travaria no Congresso Nacional na qualidade de Deputado Federal e mais tarde como Senador da Republica, para sensibilizar os demais parlamentares da importância de se combater o racismo institucional, objetivando o estabelecimento de políticas afirmativas que pudessem compensar a raça negra pelos séculos de escravidão. Também explicita algumas conquistas e realizações do intelectual depois de voltar do seu exílio dos Estados Unidos. Nesse ponto, podemos perceber que ela abre a discussão falando sobre a criação do Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiros e como Abdias teve dificuldades para organizar o 3 Congresso de Cultura Negras das Américas por conta das barreiras impostas pelo governo militar,na época.Constatamos nessa parte do livro que o teatrólogo participou da fundação do PDT ao lado de Leonel Brizola, assim como foi o grande responsável pela criação da Secretaria do Movimento Negro deste partido, primeira secretaria de combate ao racismo construída dentro de um partido político na história do Brasil, embora ao ter entrevistado Abdias para fazer esta obra a escritora não tenha observado esse fato histórico. Creio que seria importante, a nosso ver, ela ter registrado esse nosso comentário, apenas como forma de reafirmar a relevância da militância do poeta e ativista na história do movimento negro brasileiro.

No capítulo 9, acreditamos que a narrativa do texto destaca aopressão enfrentada pelo candomblé desde os primórdios da colonização no Brasil ena opção religiosa adotada por esse filho de Oxum- o poeta Abdias do Nascimento. Sandra mostra com base em depoimentossuas relações de amizade com a importante sacerdotisa Mãe Senhora e o artista plástico Mestre Didi, ambos integrantes do terreiro de matriz africana Ilê Axé Opô Afonjá.E, ainda, ressalta a escolha do candomblé na vida do ativista como parte de sua luta contra o racismo e que isto teria surgido em função da discriminação racial praticada historicamente por setores da Igreja Católica.

Finalmente, no capítulo 10, falando sobre as inúmeras homenagens que ele teria recebido em vida, a nossa autora não hesita em afirmar que temas como as políticas de cotas, bem como o próprio debate sobre a implementação da Lei 10.639\03, uma Lei que estabelece o ensino da História e Cultura Afro-brasileira no sistema de ensino seriam mais umas das conquistas das lutas pela igualdade racial do ativista no Brasil, o que concordamos com seu ponto de vista. No mais, temos que reconhecer que esta obra pode e deve fazer parte de qualquer biblioteca,pois ela traz com riqueza de detalhes citações, falas e depoimentos de outros grandes militantes negros do porte de Carlos Moore,Sueli Carneiro, ÉleSemog e Elisa Larkin Nascimento,esposa e companheira de luta do singular e grande pensador das africanidades, comparado a personagens da História mundial como Luther King, Angela Davis eAiméCésaire, diga-se a bem da verdade.Portanto, em síntese, o livro traz uma belacontribuição historiográfica na medida em que esta obra nos oferece o conhecimento de boa parteda história do movimento negro no Brasil e no mundo,tendo como foco central avida do ativista e intelectual Abdias do Nascimento, o qual deve ser visto pelas futuras gerações como o maior ativista negro brasileiro e que contribui com sua luta antirracista para o progresso da humanidade. Logo,ao ler este livro recomendo como leitura obrigatória. É que esta obra faz com que tenhamos que enfrentar as nossaspróprias consciências neste mundo marcado por apatias políticas e por fortes doses de imobilismo em muitos representantes dos excluídos. Eperceber que o seu legado ainda está para ser avaliado em toda sua dimensão histórica e intelectual. Sinceramente, esperamos que outros militantes negros(as), pesquisadores, jornalistas e historiadores tenham a ousadia e coragem de um dia fazer tal empreitada,sob pena de ficarmos eternamente perguntado como entender uma personalidade tão multifacetada e humanista, como foi de fato a de Abdias do Nascimento.

 

Fonte: Irdeb

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