Resiliência e paciência estão no fim

O futuro de vidas preservadas depende de políticas públicas de habitação, saneamento, mobilidade urbana e desenvolvimento

FONTEPor Flávia Oliveira, do O Globo
Chuva deixou rastro de destruição no Bairro Itatinga, em São Sebastião (SP) (Foto: Maria Isabel Oliveira/ Agência O Globo)

O dicionário define resiliência como a propriedade que corpos — nem todos — apresentam de retornar à forma original depois de submetidos a uma deformação elástica. Há também o sentido figurado de um indivíduo se recobrar sem dificuldade ou, pior, se resignar com a má sorte ou com mudanças, por óbvio, negativas. Leio e penso no desenho animado do Papa-Léguas, em que o Coiote era sistematicamente achatado pela armadilha que montava para aprisionar o desafeto. Reconfigurado, jamais aprendia a lição.

Resiliência é tudo o que vem sendo exigido da natureza e dos humanos afetados pela crise decorrente da exploração vil dos recursos naturais e da violação contumaz do direito dos vulneráveis à vida digna. Paciência é a qualidade que está chegando ao fim para uns e outros. O ponto de inflexão para o Brasil compreender que há limite para tudo pode ter sido a tragédia que se abateu sobre o Litoral Norte de São Paulo entre a noite de sábado e a madrugada do domingo de carnaval.

Sobre os municípios de São Sebastião e Bertioga desabaram, em 24 horas, mais de 600 milímetros de chuva fortíssima. Na série histórica do Cemaden, o órgão de alerta para riscos de desastres naturais, nunca caiu tanta água, em tão pouco tempo, num só território. O recorde anterior (534mm) era de abril de 2022, em Petrópolis, município da Região Serrana do Rio de Janeiro, semanas depois de uma chuvarada carregar vegetação, automóveis e construções e ceifar 241 vidas. Foi a maior tragédia na cidade, que já tinha sido afetada também por deslizamentos e inundações que mataram mais de 900 pessoas em sete municípios fluminenses, em 2011.

São Paulo passou a semana resgatando e contando corpos, desobstruindo estradas, restabelecendo serviços, angariando ajuda, contabilizando prejuízos. Nenhuma tarefa chegou ao fim. Como no Rio há 12 anos ou 12 meses atrás, na Bahia no ano retrasado, em Minas Gerais e no Paraná em 2022, avolumam-se notícias sobre redução ou mau uso dos recursos para prevenção de desastres, ocupação irregular de encostas, falta de planejamento urbano, desassistência.

— O bioma Mata Atlântica, que alcança tanto o litoral de São Paulo quanto a Costa Verde fluminense, a Região Serrana e a capital, vem sendo muito tensionado por processos acelerados de urbanização e desmatamento. Cito ambos, porque é possível acelerar a urbanização sem desmatar e impermeabilizar o solo. São fundamentais os investimentos em tecnologia da resiliência, educação ambiental, planejamento urbano — diz a arquiteta e urbanista Tainá de Paula, recém-empossada secretária municipal de Meio Ambiente no Rio.

Moradores do litoral de São Paulo estão sofrendo o que 4 milhões de brasileiros e brasileiras que habitam qualquer dos 14 mil pontos do território nacional com alto risco de desmoronamento enfrentariam se 600mm de chuvas desabassem num só dia. A maior parte dessas áreas — São Paulo inteiro, por exemplo — não conta com sistema de alerta por sirenes, instalado em 103 comunidades cariocas há um punhado de anos, com resultados satisfatórios em poupar vidas.

O conceito de mortes evitáveis foi usado — e compreendido — durante o período mais letal da pandemia. Pela Comissão Parlamentar de Inquérito, soubemos que 400 mil das quase 700 mil vítimas da Covid-19 ainda estariam vivas se as medidas sanitárias (distanciamento, máscara, isolamento) fossem cumpridas com rigor e se a vacinação começasse, sem resistência, em fins de 2020. O mesmo raciocínio cabe para o total de óbitos, verão sim, verão também, pelos efeitos de chuvas cada vez mais frequentes e intensas, em decorrência da emergência climática.

A tragédia em São Sebastião detonou um bem-vindo ambiente de diálogo e cooperação entre prefeitura local, governo do estado e Executivo federal, há muito não visto. O presidente Lula visitou a região no dia seguinte à tragédia, se reuniu e deu entrevista com Tarcísio de Freitas, o bolsonarista que governa São Paulo, Felipe Augusto, prefeito eleito pelo PSDB que também apoiou a reeleição do ex-presidente. Ver autoridades juntas no enfrentamento a tragédias nacionais deveria ser natural, mas os últimos quatro anos mostraram quão improvável pode uma banalidade se tornar.

A responsabilidade compartilhada entre municípios, estados e União é absolutamente necessária. Tragédia consumada, há urgência no resgate de mortos e sobreviventes, na assistência e acolhimento a feridos, desalojados e desabrigados, na recuperação da infraestrutura viária e de serviços, no restabelecimento de atividades econômicas e laborais, em ações de reparação patrimonial e financeira. Para evitar novas catástrofes, investir em prevenção. É bom ter em mente que prevenir é também dimensão de responsabilidade fiscal, uma vez que remediar é mais caro e doloroso.

O futuro de vidas preservadas depende de políticas públicas de habitação, saneamento, mobilidade urbana e desenvolvimento atravessadas pela proteção ao meio ambiente e pelo respeito aos direitos humanos. E de uma elite econômica e intelectual humanizada. Já não há espaço para o bem-estar de uns poucos em meio à desgraça de tantos. A emergência climática abate os mais pobres, que são pretos e pardos e indígenas e favelados e ribeirinhos. Mas não poupará os privilegiados. Resiliência e paciência estão no fim.

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