Resultados da pesquisa Exoesqueleto digital afrodescendente / parte 1

Artigo discute importância do meio digital para a juventude negra; Juarez Xavier é coordenador do Núcleo Negro para Pesquisa e Extensão da UNESP, o NUPE

Texto: Profº Drº Juarez Xavier , no Alma Preta 

Os arranjos produtivos locais intensos de cultura (ApliC) arquitetados pelo movimento social de jovens afrodescendentes apropriaram-se do exoesqueleto digital, formado pelas redes virtuais, para o enfrentamento do preconceito, da discriminação e do racismo, neste início do século 21.

Exoesquelo Digital é o termo usado como infraestrutura para a produção, veiculação e distribuição de conteúdos.

Nas áreas de concentração tecnológica, as organizações acêntricas encontram as condições ambientais favorecedoras para essas iniciativas políticas.

Os pontos de cultura disseminaram pelo território o chassi digital, que acelerou o fluxo de produção de conteúdo, agrupou agentes criativos hábeis na captação, edição e difusão de informações, e conectou os insumos tangíveis e intangíveis, necessários à ação ampliada para as intervenções políticas de oposição.

As publicações do mapa da violência, das informações da Comissão Parlamentar de Inquérito do Congresso Nacional e da Anistia Internacional incitaram o fórum da campanha contra o extermínio da população jovem, negra e pobre.

A campanha intercedeu no debate da necessidade de reversão desse cenário, impulsionou à adoção de políticas públicas, e despertou setores da sociedade para a magnitude do problema, que ceifa a vida de milhares de jovens, com o silêncio conivente dos meios de comunicação monopolistas.

A apropriação dos recursos digitais pelos ApliC é um ponto de inflexão na luta e enfrentamento ao racismo e à violência sistêmica.

Critérios de Noticiabilidade: componentes técnicos e políticos

As notícias veiculadas são o resultado final de um longo processo de combate pelo conteúdo. O fluxo da informação é constituído por diversos mecanismos que filtram a informação. Os critérios de noticiabilidade não são os únicos vetores que determinam o conteúdo. Há aspectos técnicos, éticos, editoriais, ideológicos e políticos.

A redação é o palco dessa disputa. Com a substituição do valor de uso pelo valor de troca da notícia, esse lócus/logos do processo produtivo converteu-se em área de disputa política e simbólica das narrativas modernas.

A disputa pela pauta é o início de um longo processo de enfrentamentos.

A observação do fato, a negociação entre os grupos culturais que constituem a redação, a convergência/divergência com a política editorial do veículo, as cadeias de comando horizontais e verticais, e os interesses comerciais das empresas transformam a pauta, muitas vezes, em mera referência burocrática, para a produção do conteúdo.

O processo industrial da informação afeta as condições de trabalho dos jornalistas e contribui com a transformação do conteúdo. As contradições na e da redação dão bases concretas ao aliciamento e coerção, que estruturam as relações de trabalho. A busca pelo prestígio profissional e social leva à flexibilidade de condutas. O reconhecimento interno e externo é o mecanismo invisível dessa ação, como as regras e normas editoriais do veículo. Com o jornalista enquadrado, enquadra-se o resultado do trabalho profissional, que se afasta dos critérios de noticiabilidade, para se aproximar dos interesses da publicação.

O fenômeno está presente na cobertura de temas complexos, com múltiplos interesses em disputa. As categorias que regulam o fluxo da informação são a omissão, a submissão e a distorção da cobertura. O que não entra na pauta não é notícia. Omitir foco de cobertura nem sempre é um processo consciente e proposital. A omissão pode se dar por diversas razões, porém o resultado priva a esfera pública do debate de temas de interesse social. O procedimento de empacotamento do conteúdo é condicionado por critérios que impõe a submissão de um tema em relação a outro. O relevo, a proximidade, o impacto da notícia submetem outros tópicos de interesse, e articulam uma narrativa única das notícias, com a inclusão/exclusão de assuntos de relevância pública. A discordância desses temas com a realidade factual provoca distorção na informação.

 

Esse artifício tira da esfera pública de debate teses fundamentais para a compreensão da realidade social, e reduz a capacidade da cidadania de superá-los. O diagnóstico foi feito há alguns anos por jornalistas norte-americanos, ao identificarem que as principais empresas de comunicação estavam associadas a grandes empresas que não tinham seu foco central na produção de notícias.

A omissão, submissão e distorção da informação fraturam a objetividade do relato jornalístico, e paralisam o debate na esfera pública de opiniões.

Há distinção entre os aspectos cognitivos da objetividade e os aspectos subjetivos da isenção, imparcialidade e neutralidade. Do ponto de vista do procedimento jornalístico, não é possível aos jornalistas manterem-se isentos, imparciais e neutros diante da realidade social. Os fatos jornalísticos impactam sua percepção e condicionam o seu relato. Porém, a objetividade ligada a aspectos cognitivos é possível e desejável. A adoção crítica do método jornalístico assegura a objetividade do relato.

A realidade é cognoscível e apreensível. O relato crível e factual pode ser realizado, como na ciência. A narrativa singular produz um conhecimento com validade social para a apreensão e compreensão do fato jornalístico.

O ethos da atividade profissional desenvolveu metódicas para a produção do relato factual – as regras da objetividade: atribuição de fonte, proporcionalidade, versões contraditórias e acesso às informações editadas. A adoção desse conjunto de normas assevera a elaboração de versões críveis, próximas da objetividade observável e compreensível para sociedade.

As notícias são frutos de enfrentamentos no processo de coordenação do fluxo de informação. Esses enfrentamentos são técnicos, políticos e ideológicos. A veiculação é o resultado final de um complexo sistema de contradições antagônicas e não antagônicas na redação. A cobertura de temas estratégicos sofre múltiplas pressões. Tópicos ligados às questões estruturais têm suas coberturas condicionadas por ações políticas, que omitem, submetem e distorcem as notícias veiculadas. O racismo é um desses assuntos. As contradições e violências provocadas pelo preconceito, discriminação racial e racismo não são abordadas em profundidade pela mídia brasileira. É nesse ponto de invisibilidade que se encontra a campanha nacional contra o extermínio da população jovem, negra e pobre brasileira.

Para desatar com essa amarra que enclausura a informação, arranjos de jovens afrodescendentes apropriaram-se do exoesqueleto tecnológico, para o enfrentamento do racismo e elaboração de políticas públicas que possam reverter o cenário de genocídio.

Percepção percebida versus percepção real

Os meios de comunicação têm papel crucial na construção da imagem dos afrodescendentes. A modelagem se dá de forma pendular. Ao longo do suporte, alternam-se as imagens dos não brancos, conforme as narrativas das editorias. Nas consideradas nobres, a presença dos afrodescendentes é concisa e tópica. Ela se resume a fragmentos noticiosos secundários, sem contextualização. A presença dos não brancos exacerba-se na editoria de esporte. Em razão da intensa e extensa cobertura de futebol, amplia-se a cobertura da imagem dos afrodescendentes, com todos os estereótipos sociais. A figura projetada é arquitetada pelo mecanismo pendular de invisibilidade/visibilidade. Consolida-se a percepção percebida da suposta incapacidade de reflexão política e racional desse grupo social. Ele é retratado como apto para as ações físicas, mas não para as intelectuais e políticas. A percepção percebida se sobrepõe a percepção real.

Esse juízo é retroalimentado pela “rede de factibilidade”, favorecido pela concentração dos meios de comunicação e pela propriedade cruzada de veículos noticiosos. A informação circula em diversas plataformas, diversas vezes para diversos segmentos.

A fórmula imprime um “simulacro” de realidade. A população é bombardeada por uma massa de dados que simula o real. Os elementos observáveis são substituídos por versões, sem o contraditório e a informação contextualizada. A variante da informação substitui a notícia informada, e põe à disposição da sociedade uma simulação, que não coincide com o factual.

Esse processo instala a tirania da comunicação. A mercantilização da notícia não dá espaço para o enfrentamento de versões. Esse despotismo midiático subverte a democracia e o espaço público.

As novas tecnologias digitais possibilitam o enfrentamento a esse caudilhismo midiático. Nas manifestações de 2013, as articulações sociais apropriaram-se dos dispositivos digitais e usinaram conteúdos de contrainformação. Esses conteúdos confrontaram os dos meios hegemônicos e, nos auges exasperados das manifestações, pautaram esses veículos e fragilizaram as narrativas dos órgãos corporativos. As mídias radicais romperam em vários momentos o cerco da mídia comercial. A disputa de narrativas sobre os acontecimentos restauraram em determinado momentos a esfera pública de debate, e arejou as discussões políticas.

Em frações de espaço e tempo, a percepção real se impôs à percepção percebida. Nessas frestas, foram observados os interesses em conflitos, a disputa das narrativas e a manipulação noticiosa patrocinada pelos meios de comunicação comerciais.

 

Exoesqueleto: infraestrutura tecnológica

O processo de expropriação da mais-valia tornou-se global. Amplificaram-se as contradições. Os conflitos, as segregações e as
violências simbólicas e físicas tornaram-se agudas. Evidenciaram-se as contradições sociais e os conflitos inerentes a essas contradições. Os fenômenos tornaram-se mais complexos e em escala ampliada. Insurge um cenário novo. São a familiaridade técnica, o motor único, a convergência de momentos e a cognoscibilidade do planeta os vetores que permitem a compreensão dessa cadeia de eventos.

A realidade torna-se complexa, multidimensional e comporta versões distintas, para grupos sociais instalados em posições distintas na sociedade, em relação aos meios de produção e a apropriação da riqueza produzida.

As narrativas deixam de ser únicas e lineares. Elas ganham dimensões observáveis distintas: a fábula [a realidade como os segmentos hegemônicos querem fazer crer], a perversidade [a realidade como ela é para a maior parte dos segmentos sociais fragilizados] e a possibilidade [a realidade desejada pelos segmentos sociais acêntricos]. A possibilidade é o estimulo para enfrentamentos dos segmentos sociais em condições vulneráveis. Eles se apropriaram dos dispositivos digitais, para a produção de conteúdo contra hegemônicos: os exoesqueletos tecnológicos, compostos por ateliês criativos, cadeias de produção de conteúdo e conexões locais, regionais e globais.

* Confira amanhã a segunda parte do artigo de Juarez Xavier

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