Quase todo mundo, em determinado momento da vida, passa por algum tipo de catarse, de revelação. Algo a que Octavio Paz se refere no livro O Labirinto da Solidão como uma descoberta avassaladora, capaz de se manifestar em um indivíduo como um “assombro de ser”. Para muita gente, incluindo o ensaísta e poeta mexicano, isso se dá frequentemente na adolescência, quando nos vemos suspensos entre a tranquilidade da infância e as inseguranças da juventude. Foi em um momento assim, na busca da própria individualidade, que Tássia Reis encontrou a música. E foi por meio do hip-hop que ela teve sua experiência reveladora, algo reafirmado no disco Outra Esfera, um dos melhores de 2016 segundo o júri da Rolling Stone Brasil.
Familiarizada desde o berço com nomes seminais do rap nacional (Sabotage e Racionais MC’s, por exemplo), Tássia se embrenhou cada vez mais no gênero musical a partir dos 14 anos, quando começou a cursar aulas de dança de hip-hop. “Fiquei encantada”, relembra a cantora oriunda de Jacareí, município paulista da região do Vale do Paraíba. “Passei a frequentar eventos que interligavam danças urbanas a vários elementos da cultura hip-hop, do rap ao grafite.”
Hoje, aos 27 anos, a paulista ainda traz fresco na memória o sentimento libertador da descoberta. Se a travessia inicial de Tássia pelas veredas do hip-hop pudesse ser simplificada com uma metáfora matemática, ela seria aquilo que os físicos nomeiam de colisão perfeitamente inelástica. Isto é, quando dois corpos se chocam e seguem unidos pelo espaço, como se fossem uma coisa só. Desde o primeiro e despretensioso contato, a música habita a artista como uma espécie de segunda pele.
Mas não é só a partir do hip-hop que Tássia constrói seu acervo de referências, embora ele seja a espinha dorsal que sustenta a maioria das composições dela. A cantora, que lista Etta James, Aretha Franklin e Nina Simone como grandes influências, ressalta ainda a importância que o jazz e o R&B tiveram em sua formação. “Quando decidi fazer minha primeira música, não pensei a princípio em escrever um rap, tanto que acabei compondo um funk-soul”, ela recorda, mencionando a faixa “Agora Que Eu Quero Ver”, do primeiro trabalho da carreira, o EP autointitulado de 2014. “Acabei indo para o rap porque já estava inserida naquele ambiente, e também porque brincava de fazer freestyle com minhas amigas. Pouco tempo depois, fui a um evento de dança e surgiu a primeira oportunidade de fazer um freestyle ao vivo. E aí eu me senti maravilhosa. Pensei: ‘Nossa, eu posso fazer rap’”, diz a cantora no tom carismático que também costuma mostrar em seus shows.
Aprofundar-se no universo do hip-hop também despertou em Tássia uma consciência questionadora sobre o papel dela como mulher negra. Conforme relembra, isso se deu em parte com a ajuda de uma figura emblemática do Vale do Paraíba. “O Betinho [Zulu] costumava apresentar livros e fitas VHS sobre direitos civis e cultura negra, sempre dentro do contexto desses eventos de hip-hop que eu frequentava. Para mim, foi um contato muito forte, muito intenso.” De maneira mais pontual do que em Tássia Reis (2014), a aproximação dela com a própria negritude se reflete nas faixas de Outra Esfera, o primeiro disco cheio. “As pessoas sempre falam muito que minha voz é doce, que eu trago calma nas minhas canções”, pontua Tássia, sem conter um riso. “Mas eu queria mostrar outra coisa minha, outro panorama. Queria mostrar indignação. E é por isso que em alguns pontos desse disco eu venho mais ‘pé na porta’.”
Lançado em 2016, o álbum escancara o machismo e o racismo como uma dupla opressão a ser vencida. Essa postura combativa da cantora se evidencia em “Ouça-Me”, um dos destaques do trabalho. “Eu tentei com carinho e o sistema me agrediu/ Então eu grito! Elevo meu agudo ao infinito”, versa Tássia, vociferando ainda: “A revolução será crespa/ E não na TV”.
“Dentro das estruturas da sociedade, as mulheres negras estão no último lugar da pirâmide social”, crava a compositora. “Vivemos em um país em que mais da metade da população é negra e mulher. Mas nós não nos enxergamos na publicidade nem nos empregos de alto escalão. Isso é resultado do racismo estrutural, que nos impede de ascender. O dia em que a mulher preta conseguir chegar ao lugar que ela quiser, é porque todo mundo vai poder chegar também.”
Tássia traz na voz uma potência singular, que faz com que sua individualidade como mulher negra se sobreponha à impessoalidade de um mundo marcado por violências raciais e de gênero. Por meio da música, ela encontrou um artifício para dar vazão à inquietude que sempre trouxe na alma, bem como uma maneira de se fazer ouvir em meio a tanta invisibilidade social. A “revelação” de Tássia veio a ela sob a forma de um sentimento cujo nome não consta nos dicionários. No entanto, devido à necessidade de objetividade de textos jornalísticos como este, vamos chamá-lo singelamente de “amor”. “O autoamor, ou amor-próprio, é também uma forma de revolução. Principalmente em se tratando de uma mulher negra como eu.”